9 Maio 2024, Quinta-feira

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Um poeta incómodo

Um poeta incómodo

Um poeta incómodo

Sebastião da Gama, na sua grandeza poética e cívica, é sinónimo de verticalidade, exigência, qualidade e humildade. Não podemos, por isso, continuar a queimar velas perante os seus retratos como aquelas pessoas de pouco equilíbrio que entram nos santuários com uma braçada de velas para acender, cumprindo ordens de alguma bruxa manhosa, e nem sequer rezam uma oração ao dono da casa. O poeta nascido há cem anos na rua principal de Vila Nogueira de Azeitão faz parte do grupo desditoso de escritores que recebem incenso, mas nem sempre são lidos com a devida e necessária atenção. Não lhe fazemos justiça. E é pena!
Ao contrário de alguns autores de versos, ilusionistas, que chegaram ao ponto de proclamar a sua desejada genialidade (como residissem na lâmpada de Aladino), Sebastião defendeu – e continua a defender – que a convocatória entregue a cada um dos poetas dignos desse nome não se destina a “Palmas, delírio, louvores nas gazetas…” Nesse poema de 1950, só publicado 54 anos depois, afirmou, peremptório: “Andamos todos enganados”. As palavras foram dirigidas aos seus confrades, mas poderiam ter como destinatários muitos e muitos leitores que vão aos altares da (sua) fama, com braçadas de velas e açafates de incenso, desejando ser bafejados por ela, mas ignorando o aviso de Virgílio, segundo o qual a Fama é o pior dos demónios. Fosse Sebastião menos conhecido – e outro galo cantaria.
Se chegarmos ao autor de Campo Aberto com a mesma atitude de quem leva os tais braçados de velas, por ordem das bruxas, melhor será estarmos quietos. Por mais que o procuremos nos altares da literatura, não o encontraremos por ali. Poesia e literatura são duas realidades distintas, como ele bem sabia. Sendo embora um dos nomes de Deus (tal como defendeu, subtilmente, Sebastião da Gama, na sua tese de licenciatura), a Poesia não tem altares. Chega discreta ao mundo. Não se deixa pôr em cima de pedestais nem permite que a rodeiem por ornamentos de talha dourada. Assemelha-se à perturbante Virgem da Humildade que marca presença na capela do Seminário Conciliar de Braga, esculpida pelo norueguês Asbjørn Andresen. Penteia-se, veste-se e calça-se modestamente como qualquer mulher modesta. Não se põe em evidência, mas está sentada entre os fiéis, como qualquer devota, com olhar atento e comovido. Não tem coroa na cabeça; tirou-a e segura nas mãos esse ornamento prescindível, sem lhe ligar muita importância. O nosso poeta, embora tenha falecido com 27 anos, sabia disso. Acredito que aprendeu a lição com o seu irmão espiritual e poético, Frei Agostinho da Cruz, defensor da liberdade como “melhor manjar”, de uma liberdade inseparável da humildade, da franqueza, da verticalidade, da paciência e da alegria – afinal, virtudes tão franciscanas. Reforçou-a na leitura exigente e atenta de escritores conscientes, como Teixeira de Pascoaes e José Régio. A Virgem do poema “Lá fora é que sim” bem pode ser uma personificação da Poesia, a quem talvez seja preciso “acend[er] o lume”, através da leitura.
Ler Sebastião obriga-nos – ou deveria obrigar-nos – a aprender com ele. Não só com o seu humor e a sua sensibilidade, mas também com a inteireza com que encarava a vida, a dor e a escrita (afinal, inseparáveis), enquanto caminhos de colaboração com o Espírito. Era por isso exigente consigo, com os outros, com o país e com o mundo. Tenhamos sempre presente quanto escreveu – e aprendamos a resistir à mediocridade que nos envolve, como via cómoda rumo à estupidez. Deixemo-nos incomodar por Sebastião da Gama. Vale a pena!

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