12 Junho 2024, Quarta-feira

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Rita Figueiras: “Há uma perturbação enorme na sociedade democrática”

Rita Figueiras: “Há uma perturbação enorme na sociedade democrática”

Rita Figueiras: “Há uma perturbação enorme na sociedade democrática”

Académica sadina, convidada para directora dos 169 anos d’O Setubalense, diz que vivemos tempos que ameaçam a democracia e a liberdade. O jornalismo é imprescindível, mas tem de aproximar-se das pessoas.

Professora de Comunicação na Universidade Católica e comentadora, Rita Figueiras, é a directora convidada da edição comemorativa dos 169 anos do jornal O SETUBALENSE que será publicada no dia 31 de Julho. O tema dessa edição especial, que já está a ser produzida, é a importância do jornalismo para a democracia e a liberdade a publicar no final de Julho.

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Nesta entrevista, a académica setubalense fala destes temas e apresenta-se um pouco mais.  

Nasceu em Setúbal, no Hospital de São Bernardo, e viveu em diferentes bairros da cidade, primeiro na Avenida Infante Dom Henrique e depois na General Daniel de Sousa.

A família, por parte da mãe, veio de Coimbra, quando o bisavô comprou uma quinta na região. Da parte do pai, os antecessores eram do Algarve. Fixaram-se em Setúbal por motivos profissionais, relacionados com os primórdios da Secil.

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Fez a primária na escola do Bairro da Conceição, com a professora Lucrécia, que “adorava” e, depois, o ciclo, na Camarinha, hoje Escola Luisa Todi. Concluiu o secundário na D. Manuel Martins quando esta escola ainda funcionava, provisoriamente, nas traseiras da actual D. João II.

Manteve-se por cá até acabar a licenciatura, mas, algum tempo depois de começar a dar aulas na universidade, acabou por ir viver para Lisboa.

O que destaca das recordações das primeiras fases da sua vida, em Setúbal?

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Vejo que é uma cidade muito mais bonita do que eu percebia quando morava cá. Ainda agora, estava a passear na baixa, quando vinha para o jornal e fui outra vez à Avenida Luísa Todi e olhei. Quando volto consigo ver melhor, que a cidade é mais bonita do que imaginava. Era tão banal para mim, porque era onde estava, e não via tão bem. O privilégio natural do rio, com a Serra da Arrábida, com Troia em frente, é de facto, do ponto de vista geográfico, uma condição muito privilegiada. E quando morava aqui não percebia isso.

Mas usufruiu dessa condição? Por exemplo, ia às praias?

Usufrui. Quando era pequenina ia uma vez por semana às piscinas de Troia. Ia sempre também para a Praia da Galé, que tinha os remoinhos e as alforrecas. Adorava! Menos o barco, porque enjoo sempre. Essa parte era a menos boa, mas mesmo assim valia a pena. E a Arrábida. O pai incutiu-me a noção do privilégio da Serra da Arrábida, da beleza, de ter uma flora única, todas essas coisas. Passeávamos sempre muito na Arrábida e o meu pai estava sempre a mostrar tudo para que eu e a minha irmã valorizássemos.

O que a levou a aceitar o convite para ser a directora da edição de aniversário d’O SETUBALENSE?

É uma oportunidade, principalmente, de devolver à minha terra, porque, como digo, quantos mais anos estou em Lisboa mais valorizo Setúbal. Outra razão é a importância que dou à preservação da identidade local. Acho que é um grande erro as pessoas sentirem que têm de viver à volta de Lisboa e do Porto. É muito importante manter tudo o que é genuíno e específico.

O que acha que distingue Setúbal no plano nacional?

Tem muita história, embora seja pouco conhecida. Sinto que as pessoas gostam muito. Dizem-me sempre “és de Setúbal? É tão bonito!”, e elogiam o peixe e o choco frito. O choco é um clássico, é o nosso Galo de Barcelos. Há muitas figuras que deviam ser mais conhecidas. Há muita gente que não sabe que Bocage era de Setúbal e Luísa Todi é profundamente desconhecida, para não falar de figuras históricas mais recentes que a invisibilidade anula. Estes trabalhos também permitem saber isso, ajudam a colocar Setúbal no mapa.

O choco frito é um clássico, é o nosso Galo de Barcelos.

Rita Figueiras

Se tivesse de apresentar Setúbal numa das suas conferências no estrangeiro, o que destacava?

Começava por destacar a questão geográfica, que é mesmo um privilégio. Não sei se as pessoas têm bem essa noção. Vi que fizeram a devolução do rio à cidade, toda a zona da ribeirinha, do cais até à Praia da Saúde e, no último Verão, até fui a pé até à Albarquel, pela água. Acho isso extraordinário, porque é uma praia dentro da cidade, o que não é muito comum. Há uma autenticidade nas pessoas de Setúbal que não se encontra muito nos grandes centros urbanos, onde há um cinismo urbano, que faz parte da urbanidade dos grandes centros. Os sítios que não são os locais de poder são mais espontâneos na forma como as pessoas se relacionam e eu acho isso bom.

Porquê a importância do jornalismo para a democracia e para a liberdade como tema da edição dos 169 anos do jornal?

Uma das dimensões é o facto de este ano comemorarmos os 50 anos do 25 de Abril. A democracia, a liberdade e o jornalismo são, obviamente, indissociáveis deste cinquentenário. Tem a ver também com a minha área de estudo e é onde posso dar um maior contributo. Depois, porque temos estes valores como um dado adquirido e achamos que nunca se pode perder aquilo que já se conquistou, quando o mais fácil é haver essa perda. Há muitos países que demonstram como a democracia está a perder as suas funcionalidades e o jornalismo também tem de fazer a sua auto-crítica, porque uma parte da responsabilidade é das pessoas, mas também é do jornalismo. Acho que há um trabalho a fazer, de aproximação entre as pessoas e o jornalismo, e que esse trabalho pode ser um pouco mais imediato para o jornalismo local, aquele que trabalha mais nas questões da proximidade.

Não existe democracia sem jornalismo.

Parece-me que não existe democracia sem jornalismo. Um não existe sem o outro. E é fundamental recordar isso às pessoas. Ao contrário do que as pessoas julgam, que na informação vale tudo, não vale. A informação feita por profissionais tem de ser valorizada e não vale o mesmo que uma informação qualquer que se encontra online grátis. É muito fácil falar sobre tudo sabendo nada mas os cidadãos têm de ser mais exigentes consigo próprios. Cabe a todos nós, cidadãos, fazermos a nossa parte para que o jornalismo consiga sobreviver e é contribuindo, comprando.

A sociedade tem de ser um espaço de consenso e de paz, porque destruir é fácil.

Rita Figueiras

O populismo é comummente aceite como uma das ameaças à democracia. Concorda?

O populismo alimenta-se de tudo o que têm sido as expectativas falhadas no regime democrático. As pessoas têm um largo conjunto de expectativas – que a vida vai ser melhor, mais fácil, mais satisfatória – e, quando não é assim, tende-se a responsabilizar o sistema. Há muitos serviços, de que as pessoas precisam, que não dão resposta o que gera uma enorme impotência. Há uma dimensão dessa sensação que é real, de verdadeiro incumprimento das expectativas da democracia, e há, também, um lado de percepção, decorrente da forma como os meios de comunicação falam da política. É óbvio que há corrupção, que há problemas, que há interesses próprios em detrimento do interesse público, mas depois há uma generalização que as pessoas fazem em que julgam que todos são iguais, e não é verdade. Quando há partidos cuja missão principal é explorar os sentimentos mais básicos dos seres humanos, quebra-se o contrato social. É perigoso porque estes partidos não fazem isto pelas pessoas, fazem-no para chegar aos lugares de poder, e a história mostra-nos, noutros países, que quando chegam ao poder, eles tendem a não melhorar as condições de vida dessas pessoas. A política está muito centrada no jogo do poder

Quando há partidos que exploram os sentimentos mais básicos dos seres humanos, quebra-se o contrato social

Rita Figueiras

Um dos seus artigos é sobre a resistência aos media. Que resistência encontra em Portugal e particularmente no jornalismo regional?

Tal como as pessoas têm cada vez uma maior desconfiança em relação aos partidos, ao Parlamento, às instituições democráticas, como o jornalismo também faz parte da democracia, está cada vez mais dentro desse volume que é a desconfiança. As pessoas tendem a achar que o jornalismo é tendencioso, que está associado a outros poderes e interesses, tal como a política. Também há outra dimensão, a mudança da forma como as pessoas se relacionam com a informação. Da informação local até à nacional e internacional. Vale em qualquer plano.

Devido às novas tecnologias?

Exactamente. O facto de as pessoas cada vez mais procurarem informação que confirme aquilo que já pensam, sempre que encontram alguma coisa contrária, elas não se põem em causa a si mesmas, mas sim o que estão a ler e a ouvir. É neste sentido que consideram que há ali enviesamento, que os jornalistas são tendenciosos, que querem manipular as pessoas. Assim, vão ganhando resistência aos meios de comunicação. Ganham resistência e evitam. As pessoas evitam determinados temas, como nós todos evitamos, e isso sempre existiu em todas as fases da história, mas agora é crescente. Principalmente em algo que existia, do contrato social que é, para ser-se um bom cidadão era preciso estar informado sobre a política, para depois votar com consciência. Havia esta ideia de dever interiorizado, de acompanhar as notícias, também, para se ser um cidadão à altura. Ler as notícias locais para saber onde votar e conseguir ter uma perspetiva críticas nas decisões que são tomadas na sua terra. E assim cresce para o nacional e para o internacional.

Haverá algum antídoto para esta resistência crescente?

Há várias coisas. Por um lado, parte da geração jovem estará perdida. No norte da Europa, há países em que as crianças do jardim-de-infância, com ajuda das educadoras, folheiam o jornal diariamente. Para começarem a perceber que é importante saber o que se passa. Obviamente que não vão discutir o Orçamento de Estado, mas vão começando a entender que a informação vai buscar-se aos profissionais. Há educação para os media. Tem de se valorizar as pessoas que têm um conjunto de métodos e de critérios de aferição, tudo o que são os procedimentos jornalísticos que validam a informação factual para publicar. Isso perdeu-se numa parte dos jovens, mas há uma geração nova com quem se pode trabalhar, desde pequenos.

Aconteceu, também, que o jornalismo ficou muito mais interessado no que o poder pensa do que no que as pessoas pensam. Está mais orientado para os poderes do que para os cidadãos. Há muitas experiências, até nos EUA com o jornalismo local, em que fazem encontros com a população para saber quais são os temas que ela gostariam de ver tratados. E isso permite, não só ter a agenda da população mas também as perspetivas da população. Como diz o Fernando Alves, há muitas estórias que estão no fim da rua. É preciso sair e ir lá.

Outro dos seus trabalhos trata a comunicação política, em termos de controlo social e tecnológico. O que concluiu?

Uma coisa que afasta as pessoas do jornalismo, e da política, é o facto de as redes sociais darem aquela sensação que as pessoas estão directamente em ligação. Perdeu-me a noção da mediação. As instituições que fazem mediação entre as pessoas e a política, entre as pessoas e a informação, como o jornalismo faz, parece que já não são necessárias. Há a ideia de que nas redes socias encontro notícias, de que não preciso do jornalismo. E a instituição ficou em crise, sem que muitos percebam a relevância para continuar a existir.

Essa auto-suficiência não afecta só o jornalismo.

Interiorizou-se a ideia de que as regras são sempre contra e as pessoas têm uma sensação de vítimas. Isto é uma perturbação enorme na sociedade democrática, que que tem de viver com regras, como no trânsito, se não houvesse regras toda a gente tinha prioridade. Toda a gente acha mesmo que está sempre no lado da prioridade. Neste individualismo perde-se o sentido de que a cidadania tem algo acima de nós, que é a comunidade, que parte da negociação entre todos. Temos de entender que a sociedade tem de ser um espaço de consenso e de paz, porque destruir é fácil.

Interiorizou-se a idéia de que as regras são sempre contra e as pessoas têm uma sensação de vítimas

Rita Figueiras

Como encara o futuro? Conseguiremos atingir o equilíbrio?

As pessoas estão muito orientadas para aquilo em que estão em desacordo, têm mais dificuldade em escutar aquilo que têm em comum. A sociedade está nesta fase, então, cabe-nos a nós, que acreditamos que é possível fazer melhor, não desistir. Nesse aspeto sou optimista.

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