Quando pernoitava nos postos avançados, era o primeiro a levantar-me. Gostava de me espreguiçar voltado para a bola de fogo que começava a subir a oriente, e de sorver o ar fresco da manhã carregado dos odores da terra húmida e do mato ali à beira. Além disso, era eu que costumava recolher lenha e acender o lume, em cujo brasido torrávamos o pão que um dos soldados ia buscar ao quartel, e que besuntávamos com uma espécie de manteiga, enlatada, liquefeita, mais uma mistela estrangeira oferecida ao exército português, ao que diziam.
Uma manhã, um cheiro estranho misturava-se aos odores do costume. Cheirava-me a excrementos humanos. Investiguei ao redor da tenda até descobrir, encostado a um dos panos, a pouca distância da entrada, um presente alto lá com o charuto! Indignado, acordei a secção e convidei-os a saírem cá pra fora.
– Quem é o autor da obra-prima? – quis saber, apontando para a dita.
Num ar de galhofa, olharam uns para os outros, depois pra mim, novamente uns para os outros, mas nada de se acusarem. Insisti. Continuaram mudos como múmias. Percebi que cada qual estaria disposto a negar a pés juntos e a jurar de mãos postas pelas alminhas das avós que já se tinham finado. Desisti. Enquanto bebíamos o café com leite em pó que sabia a não sei quê, e comíamos as torradas besuntadas com o sebo, houve acusações veladas, apostas, piadas e risota basta.
As noites sucederam-se e a encomenda voltou a aparecer, uma vez mais muito arrumadinha à tenda, agora do outro lado. Tornei a reagir, uma vez mais sem resultados. Desconfiava de um radiotelegrafista, um matulão que fazia dois de qualquer um de nós. Cada vez que estava de sentinela, e a pretexto de me transmitir algo suspeito que detetara, fazia-me saltar da cama, procurando depois entreter-me o tempo que durava o seu turno, com conversas sobre a família, a terra natal e banalidades. Os outros também suspeitavam dele, puseram-se à coca, e uma noite caçaram o patifório a dar de corpo.
– Furriel, já sabemos quem é o marmelo! – informou-me, ovante, um dos detetives de ocasião, ainda antes de me levantar.
Fiz o que era meu dever: dei-lhe o sermão da ordem e convidei-o a limpar a porcaria. O atleta, acabrunhado, confessou medo do escuro e défices de coragem para se afastar uns metros da tenda, desfazendo-se em desculpas e rubores, e jurando que não repetiria a façanha. E sai-se com esta:
– Tenho um grande azar, companheiros: quando chega a hora do turno dá-me sempre a vontade de fazer o servicinho.
A formalidade da situação descambou. A palavra «servicinho» e a maneira como a pronunciou o grandalhão, contagiou-nos a todos. Uma gargalhada geral, sonora e longa, daquelas que repetimos até nos faltarem as forças, subiu aos ares, enquanto o nosso herói, calado, continuava com cara de menino que confessa a sua maldade. Mas cumpriu o prometido. Do que não se livrou foi que a companhia inteira passasse a tratá-lo por Servicinhos.
Volvidos uns dias, proporcionou-se uma compensação para o desterro, as faltas, os desconfortos, as noites de medo e os recalcamentos sexuais dos magalas do posto avançado. Uma prostituta cabo-verdiana, de visita a Aldeia Formosa, descobriu aquela mão-cheia de franganotes isolados e carentes, e decidiu que havia ali canja.
A princípio, parece que o alvo exclusivo das suas atenções era eu próprio, ou melhor, os cobres que o Exército me pagava. Declarou-se-me exímia em todas as artes de Vénus, jurando grandes asseios e saúde confirmada por exames ginecológicos acabados de fazer. Não foi fácil resistir à tentação: a mulher exibia argumentos físicos que não eram brincadeira, e um homem não é de pau. Mas não embarquei na cantiga dela.
Depois, atacou os soldados. Estrondosa vitória! Combinaram-se os combates, dois por dia, correspondendo à escala das sentinelas. Fez-se o aprovisionamento do material antivenéreo. O pessoal andava nas nuvens, a moral elevadíssima. Enquanto durou a paródia, não se falou mais em mágoas, mínguas ou medos. Condições que impus, para autorizar o início das hostilidades: nada de bazófias no quartel nem de refregas na minha tarimba.
Um a um, a matronaça aviou-os todos, depenando-lhes as poupanças até ao último peso, deu borlas e não regateou carinhos. Gastaram os patacos mas, pelos vistos e pelos contados, atingiram a lua e as estrelas, viajaram por paraísos há muito não visitados (ou completamente desconhecidos), esqueceram a guerra, sentiram-se vivos, foram felizes.