Pela manhã bem cedo, pois não seriam todavia as sete e meia, e o dia mal desperto e ainda no seu espreguiçar acabrunhado, e os dois miúdos, com tando de idade como o dia de horas, estendem a mão um ao outro e cumprimentam-se.
São vizinhos, são amigos e só não estão mais felizes com o encontro, do que os dois, que cada um a cada qual traz pela trela, e que usando o nariz em vez das mãos, à sua maneira de cachorro se cumprimentam também. Contam as novidades um ao outro, os miúdos e dão trela aos cachorros que pedem liberdade em busca do alívio. Olham-nos pelo canto do olho, deixando-os à sua publica privacidade, que aliviados, raspam o chão talvez informando os donos, que recolhendo os dejetos, no saquinho fechado e atado os depositam no contentor.
E correm, perseguem-se à vez, brincam os cachorros e com eles correm e brincam também os donos. Uns, fingem rosnar, outros riem. Um maior, o outro ligeiramente mais pequeno. Um negro e o outro castanho, um tem pelo curto e o outro comprido e são claramente de raças diferentes, os cachorros. Os miúdos, … não reparei; pois a haver e não tendo qualquer diferença para eles importância, tampouco o tem para mim.
Incómodos, os telemóveis fazem peso e volume no bolso das calças. Talvez esperando a chamada das mães ditando o regresso a casa, ou, aguardando o seu momento de participar na brincadeira. Mas como possessivo que é, o bichinho eletrónico, querendo sempre a atenção só para si, de castigo e muito bem, por agora foi posto de lado. É que agora é hora da imaginação, do sonho e dos amigos que se conhecem de verdade e o são, como só as crianças entre si e seus bichos o conseguem. Com o sentimento à flor da pele e grande, maior que a idade.
É manhã, bem cedo, passando pouco das sete e meia e eu, do outro lado da avenida no posto de abastecimento de combustível, a caminho de mais um dia de trabalho e reconhecendo por vezes em mim, já algum daquele pessimismo à velho do Restelo, vendo o saudável esbanjar de energia naqueles miúdos, de mãos dadas com o Mundo e a natureza pela trela, correndo na relva do jardim por entre os prédios, por onde, querendo temperar o frio da manhã, o Sol espreita, sorriu.
E sem o querer, o Sol lembra-me o clima alterado, e nele o degelo da Antártida, o rarear da água potável, os lugares em que outros miúdos brincam de máscara, e outros ainda a onde nem brincam mais. A Amazónia que ardeu e a Austrália que arde, e todas a calamidades resultantes dos nossos ambiciosos erros e da nossa incapacidade de os corrigir, e envergonhado, desvio o olhar. Perco o sorriso!
O motor a trabalhar, já na faixa de rodagem e ainda os vejo, e digo baixo; alto fosse, … que ninguém ouviria com o barulho da cidade que desperta, talvez o mesmo, que nos tem ensurdecido. Mas digo-o sincero e franco: -Desculpem!
Com os que escolhemos por melhores, reunimo-nos em Madrid, pousámos para as fotos, discutimos e discutimos, comemos e bebemos e de novo, nada decidimos. Como promessa de Ano Novo, feita e não cumprida, para o próximo ano a deixamos, para talvez cumprir.
Na curva, da cidade e do tempo que não pára, já não os vejo, mas estão lá. De costas para ele, não será o Sol, ainda fraco, que me aquece o peito, mas a esperança: -Eu sei que vocês farão melhor!