Na noite de 24 de Abril de 1974 deitei-me tarde como era hábito, pois escrevia os meus artigos para o “Notícias de Setúbal” de que era director altas horas da noite depois dum dia intenso de trabalho clínico.
E como sempre escrevia com uma preocupação de transmitir as notícias ou as minhas opiniões á maneira de parábolas com a intenção de “fintar” o capitão Almeida – o censor de serviço aqui em Setúbal – numa autocensura desde há muito interiorizada no regime em que vivíamos.
E deitei-me, como acontecia sempre nos últimos meses, com um certo receio que altas horas da noite me tocassem á porta os esbirros da polícia política – é que desde há alguns meses amigos meus interrogados pela Pide me vinham contar que sempre no interrogatória lhes era perguntado algo sobre a minha vida o que me fazia viver numa insegurança permanente.
Pelas sete horas da manhã toca o telefone! Não era a policia que essa atuava pela calada da noite, seria certamente mais um doente a chamar-me para uma visita de urgência, como era hábito naquela altura e acontecia com frequência.
Mas, oh surpresa das surpresas, era um amigo que com voz ansiosa me dizia:
“Mário, liga a televisão depressa, há uma revolução!”
Corri para a TV, ouvi marchas militares, e pouco depois a voz grave dum militar: “Aqui, Comando do Movimento das Forças Armadas…”
E continuava pedindo calma ao povo e recomendando que ninguém saísse para a rua e se mantivesse em casa! Era o “25 de Abril”, era a liberdade que chegava, era a censura que acabava e se podia falar, ler e escrever livremente, era – ao fim de quarenta anos o fim duma vida sempre tensa e angustiante enquanto fora dirigente associativo em Coimbra, era o fim de ser considerado “suspeito” a quem negavam o passaporte para sair para o estrangeiro ou ocupar um lugar dirigente na minha carreira médica, era o absurdo de olhar em volta sempre que me sentava á mesa dum café ou conversava com o Zé Afonso, meu contemporâneo em Coimbra, era a LIBERDADE que chegava!
Qual ficar em casa, qual calma, qual prudência pois a alegria a todos puxava para a rua num impulso incontrolável E na televisão víamos em Lisboa as chaimites, verdadeiros cachos humanos, cobertas de povo cantando e exultando de alegria, misturado com os soldados de armas no ar sorrindo com ar de vitória e idêntica alegria.
Chegara a liberdade! Íamos poder ser uma sociedade e um país como os outros, podíamos falar e escrever ou organizarmo-nos em partidos, associações, clubes, como quiséssemos, podíamos finalmente ser cidadãos de corpo inteiro.
Era a Democracia que chegava, era o “poder do povo” que ia ser ouvido e participar na vida nacional Estes 45 anos não podem deixar de ser assinalados com emoção, com muita emoção. E esta emoção tem de ser um verdadeiro motor para lutar contra os desvios da nossa democracia , da nossa liberdade, agora sob uma ditadura económica, sob um processo de globalização da indiferença, agora governada pelo poder do dinheiro esquecendo a dignidade e o primado do ser humano.
E nesta ditadura doente, neste tipo de ditadura não cabe aos militares movimentarem-se para a esbater ou anular. Somos todos nós, cidadãos conscientes que teremos de lutar e tomar iniciativas para um regresso á verdadeira liberdade e à verdadeira democracia, baseadas nos valores da justiça e da solidariedade.
É necessária uma “revolução da caridade” como dizia há muitos anos D. Hélder Câmara, ou a “revolução do afecto” com nos diz hoje o Papa Francisco, para corrigirmos a corrupção generalizada, o amiguismo ou os nacionalismos exacerbados a lembrarem os totalitarismos fascistas.
Acordem cidadãos! Acordem cidadãos cristãos pois tendes “em vós Aquele que vos dá força” como diz S. Paulo e sabemos qual o verdadeiro Caminho indicado por Jesus cuja ressurreição festejámos há três dias.
Quarenta e seis anos de vida em ditadura política, amordaçado!
Quarenta e cinco anos de vida em democracia ,agora partidocracia, e algo desiludido!
Mais de noventa anos de vida, de luta e participação, insatisfeito!
Lembremos sempre o dia 25 de Abril de 1954!