A pandemia provocada pelo Coronavírus veio relançar o debate sobre a importância da erradicação das carências habitacionais no nosso país. A concentração de novos focos de contágio em bairros degradados é apenas um exemplo da vulnerabilidade desta população, que começa na precariedade do emprego e acaba na precariedade da habitação. Para as famílias que vivem em barracas ou casas sobrelotadas, sem possibilidade de distanciamento social nem condições de higiene, “ficar em casa” tem outro significado.
Um dos bairros degradados recentemente identificado pelo aumento do número de casos foi “Vale de Chícharos”, também chamado de Bairro da Jamaica, no Seixal. Por coincidência, este bairro foi também declarado pelo governo e pela autarquia como prioridade número um para realojamento devido às condições subumanas em que se encontram os seus moradores há mais de trinta anos, incluindo risco de vida.
A verdade é que o protocolo entre a autarquia do Seixal e o Governo que foi assinado em 2017 para o realojamento de 234 famílias não vai estar cumprido até ao final de 2021. Aliás, a segunda fase do realojamento foi dada como atrasada logo no início do ano. A especulação imobiliária foi apontada como o obstáculo que nem autarquia nem governo tiveram determinação para ultrapassar, suspendendo a vida e as expectativas destas famílias. E assim chegamos ao final de maio de 2020, no meio de uma pandemia e com um foco de contágio no Bairro da Jamaica.
As autoridades de saúde devem fazer o que for necessário para proteger as pessoas e conter o vírus, incluindo a desinfecção, testagem e até encerramento temporário dos estabelecimentos. Mas seria hipócrita qualquer sugestão de confinamento de um bairro cujo problema já é ser um “gueto”. A intervenção musculada das forças de segurança no bairro a pretexto de uma intervenção de saúde pública também não resolve nada, só agrava o estigma, o preconceito racial e a discriminação.
O que é preciso é coragem para exigir à autarquia e ao governo medidas definitivas para o realojamento. Independentemente da sua origem, o vírus instalou-se num bairro que já nem devia existir, e essa culpa não pode morrer solteira.
Infelizmente, há muitas “jamaicas” na àrea metropolitana de Lisboa e no distrito de Setúbal, sobretudo em Almada e no Seixal. As carências habitacionais, tão marcadas na margem sul, são um problema de Direitos Humanos e de saúde pública. As autarquias e o Governo têm a responsabilidade de resolver agora o que há muito prometem com poucos avanços visíveis.
Não podemos esperar mais uma década para cumprir o direito à habitação e erradicar os bairros de barracas. A COVID19 mostrou-nos muitas das nossas fragilidades enquanto sociedade, expôs ainda mais as feridas da desigualdade social. Para combater a doença nova, temos de resolver os problemas antigos, a começar pelo direitos de todos a uma habitação digna.
(este artigo foi escrito a quatro mãos, com a participação do Vereador do Bloco de Esquerda do Seixal, Francisco Morais)