Os resultados eleitorais no concelho e na península de Setúbal revelam a verdadeira chave de leitura destas eleições. Uma leitura que tem de ir para além do imediato. Tem de compreender e integrar as tendências de fundo. Deve articular-se com a mudança das placas tectónicas eleitorais nos países ocidentais. Dos EUA, ao resto da União Europeia.
Se a nível nacional foi a AD que ganhou as eleições, a vitória do Chega na região de Setúbal diz-nos muito mais sobre o que poderá suceder no país a médio prazo. Tal como sucedeu nas regiões industriais dos EUA, onde a esquerda do partido Democrata preponderava e agora campeia o trumpismo, ou nas áreas mais industrializadas de Itália, França e Espanha, onde os partidos comunistas e socialistas clássicos eram preponderantes, e agora são as forças de extrema-direita que se tornaram hegemónicas, parece ter chegado a vez de Portugal colocar a extrema-direita à frente em distritos que, tradicionalmente, estavam pintados a vermelho, ou vermelho e rosa. A pior coisa que se pode fazer, por ser intelectualmente arrogante e um total erro de análise, é culpar os eleitores. O crescimento do Chega em Portugal, como o do Vox em Espanha, o do Reagrupamento Nacional em França, o da AfD na Alemanha, ou o dos Irmãos de Itália da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, são, na sua essência, uma consequência e não uma causa.
Em todo o Ocidente, começando como sempre nos EUA, o debate político foi sendo transformado num espetáculo. As ideias foram substituídas por slogans publicitários. Os conselheiros políticos deram lugar a agências de comunicação que mudam a maneira de vestir e de falar dos candidatos. Os próprios partidos deixaram de ser os sujeitos do jogo político, para serem apenas os meros promotores de “candidatos a primeiro-ministro”, transformando as eleições para os parlamentos em castings de bem-parecer e charme. Veja-se como a AD fez destas eleições uma batalha para referendar em eleições as falhas éticas de Luís Montenegro, numa total falácia entre justiça e popularidade eleitoral. Não admira que à frente dos partidos se tenham posicionado, não os mais experientes e competentes, mas os mais aliciantes, fotogénicos e empáticos.
A substância das eleições perdeu a sua componente semântica, para se transformar num debate entre personalidades, com uma componente emocional cada vez mais fundamental. Não foi o Chega sozinho que esvaziou a campanha de temas essenciais para o futuro de Portugal: o alinhamento de Portugal e da União Europa numa guerra perdida, que pode escalar para o apocalipse nuclear; a loucura de pensar que o futuro da UE se encontrará numa corrida aos armamentos, aumentando as dívidas públicas, a desigualdade e a degradação dos serviços de saúde, educação e transportes, assim como da própria segurança social. Em 2014 e 2019 escrevi dois livros onde demonstrei que, sem uma reforma profunda da zona euro, Portugal e outros países seriam esmagados e condenados a uma austeridade perpétua. O que aconteceu desde aí? O PS, a AD e o resto dos partidos “responsáveis” continuam a tratar a UE como uma “vaca sagrada”, ao ponto de António Costa ter trocado a sua maioria absoluta de 2022 por um lugar à frente do, cada vez mais patético, Conselho Europeu.
O Chega cavalgou com maestria esta tendência. André Ventura – um génio na gestão das imagens, das emoções e do carisma – transformou a política portuguesa num grande Reality Show, num Big Brother a tempo inteiro. Quanto mais os problemas de degradação da qualidade básica de vida dos portugueses aumentavam, devido aos desastres acumulados pelo PS e AD na promoção de crises – apresentadas por esses partidos como sucessos – na habitação, na saúde, na educação na precarização do emprego, mais Ventura não só referia esses temas como procurava apresentar uma causa fácil de identificar para eles, à altura de um Big-Brother. Para Ventura e o Chega, a culpa da degradação da qualidade de vida e da crescente desigualdade no nosso país, não reside na submissão da UE aos EUA e ao grande capital financeiro, numa união monetária construída sobre bases injustas, transformando uns países em filhos e outros em enteados, numa guerra contra a Rússia que está a autodestruir a economia europeia e as bases do seu futuro. Não, para Ventura e o Chega, a causa é próxima e tem rostos concretos: são os ciganos, são os imigrantes, são aqueles cuja existência é considerada como um insulto a preconceitos sinistros e desumanos, que são apresentados como se fossem valores. Ao fazer essa grotesca fulanização das causas do mal-estar social de muitos milhões de portugueses, Ventura e o Chega sabem que estão a arrastar para o seu lado, as forças viscerais da agressividade e do ódio. Estão a fazer um pacto com o diabo. Tudo indica que essa via rápida para a terra prometida do poder político, não lhes causa quaisquer problemas de consciência.
Em 1933, quando Hitler chegou ao poder por via eleitoral, para destruir a República de Weimar e instaurar a ditadura nazi, também a política já havia sido transformada num processo de escolha emocional e encenada com talento dramático e artístico de um chefe providencial. O povo alemão, “povo de poetas, músicos e filósofos”, corroído pela fome e desemprego do colapso do capitalismo financeiro iniciado em 1929, também deixou de discutir a luta de classes e as culpas do capitalismo, para se concentrar na minoria judaica como bode expiatório. O “império de mil anos”, prometido por Hitler, terminou doze anos depois, num inferno de sangue e fogo.
Ainda vamos a tempo de evitar sequelas desses tempos sinistros em Portugal e na Europa. Mas, para isso, importa reinventar a política como um assunto sério, fundado no conhecimento racional e na competência. Orientada pela resolução dos problemas das pessoas, numa perspetiva de justiça e do primado do bem comum. Visando também o longo prazo, para que as decisões de hoje não deixem um mundo em ruínas e desertificado como casa hostil das gerações futuras.