Em 1980, José Saramago publicou a peça “Que farei com este livro?”, obra em dois actos, logo levada à cena nesse mesmo ano na Academia Almadense pela mão de Joaquim Benite. Assinalava-se o quarto centenário da morte de Camões, que podia ser o motivo para homenagear o vate renascentista de uma maneira fácil e apologética, mas Saramago criou uma história mostrando o processo difícil de publicação de algumas obras em consequência de pressões vindas das mais diversas proveniências e pelas mais variadas razões.
Nesta peça, em que entram vinte e cinco personagens (ainda que algumas tenham um papel de importância mínima), sobressaem, além do próprio poeta, as figuras de Damião de Góis e Diogo Couto (amigos do poeta) e Bartolomeu Ferreira (censor de “Os Lusíadas”), todos representando posições e tensões diversas.
Dois anos, decorridos entre 1570 e 1572, é o tempo da acção, balizada por acontecimentos como a chegada de Camões da Índia e a publicação da sua narrativa épica, “Os Lusíadas”, intervalo dominado pelo esforço do poeta para que a sua obra seja publicada.
Ao dar nota das pressões exercidas, algumas delas ocultas, no sentido do êxito ou do insucesso da edição, Saramago poderá ter querido ir mais longe (haja em vista que o regime democrático português tinha apenas 6 anos), na denúncia do controlo ideológico feito sobre os artistas, muitas vezes travestido de humilhação. Miguel Real e Filomena Oliveira, em “As 7 Vidas de José Saramago” (2022), sublinham este aspecto, referindo ser possível ver em “Que farei com este livro?” o reflexo de situações vividas por Saramago — recusa de publicação da obra por editoras, autor estigmatizado pelo regime vigente, o desprezo das elites.
O facto de a história começar em tempo de peste, quando a corte estava em Almeirim, pode servir como metáfora para uma outra peste duradoura e pressentida, agindo sobre o campo das ideias — paulatinamente, ela vai actuando: numa conversa entre fidalgos, Diogo do Couto questiona “Senhores, quem, de entre vós, fidalgos, religiosos, despachadores, moços de câmara e mais quem esteja, conhece Luís de Camões?” e a resposta é dada pela didascália que indica “silêncio geral”; na corte, quando vê o rei a aproximar-se, Camões dirige-se-lhe dizendo que naquele livro tinha escrito “os feitos dos vossos antepassados e as navegações dos Portugueses, do povo de que sois senhor” e, perante a indiferença da real figura, o secretário ordena-lhe que se afaste, pois está a importunar Sua Alteza; na conversa com o neto de Vasco da Gama, a quem recorreu para pedir auxílio na publicação, a humilhação é evidenciada ao ouvir que “a casa da Vidigueira não precisa de quem lhe cante as glórias, ou pagará a encomenda que fizer para lhas cantarem”; finalmente, a intervenção do censor, que exige alterações aqui e ali, sem as quais não seria dado parecer favorável.
Espaço de liberdade é o encontro de Camões com Damião de Góis (n. 1502), em que também esteve presente Diogo do Couto (n. 1542), momento em que se encontram três gerações, com a necessidade de serem fechadas a janela e a porta do aposento — “porque a este sol de Fevereiro sobeja-lhe em luz o que lhe falta em calor” e “por causa do que a Portugal também sobeja e do que a Portugal falta”, justifica o mais velho, que, depois, explica: “Falta a Portugal espírito livre, sobeja espírito derrubado. Falta a Portugal alegria, sobejam lágrimas. Falta a Portugal tolerância, sobeja prepotência.” Damião de Góis virá a ser um intercessor pela publicação da obra, mas, por outras razões que a época explica, acabará preso em 1571, com a indignação de Camões — que questionou o censor sobre as causas desta prisão pelo Santo Ofício —, percebendo-se que a liberdade era mesmo restrita e condicionada e que a justiça não era óbvia.
O título da obra ganha eco no final da representação, quando o próprio Camões, acabando de receber o primeiro exemplar impresso, se questiona: “Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende ligeiramente os braços, olha em frente.) Que fareis com este livro? (Pausa)”. A mudança de pessoa gramatical, da primeira do singular para a segunda do plural, acaba por desafiar os leitores, os poderes e as gerações seguintes: de que significado se virá a revestir esta obra ou que significados lhe virão a ser atribuídos? Ou, melhor, de que aproveitamentos padecerá esta obra?
Uma questão importante, sem dúvida, para ser pensada (haja em vista as utilizações nem sempre por razões artísticas que da obra e do autor têm sido feitas), sobretudo quando se assinalam, ainda que convencionalmente, os 500 anos sobre o nascimento de Luís Vaz de Camões.