O conto foi a tipologia literária que Matilde Rosa Araújo preferiu para o seu percurso de escritora, marcando todo o seu trajecto literário, opção justificada desde cedo: em 18 de Julho de 1944, Sebastião da Gama era o destinatário de uma carta de Matilde, que incluía alguns poemas anunciados como partes integrantes de um futuro livro, “Mar Alto” (que não viria a ser publicado), em que a preferência pelas histórias era registada – “Creio bem que o Mar Alto há-de ficar sempre numa gaveta à espera de maré. Prefiro publicar novelas que são menos eu. Tenho medo de que digam mal do mar alto porque dizem mal de mim.” E, uns meses depois, em Março de 1945, o poeta da Arrábida recebia nova carta, acompanhada de páginas do diário de Matilde, que proclamava, em 24 desse mês: “Eu vou fazer um conto quando tudo grita poesia. Mas a poesia não conta, fala sem dizer. E o conto conta, diz. (…) Eu tenho que dizer.”
Depois de se ter estreado com “A Garrana” em 1943, Matilde Rosa Araújo foi publicando contos em revistas diversas. Pela Páscoa de 1947, publicava “Estrada sem Nome” (Portugália), reunindo vários deles, depois de uma hesitação entre a conhecida editora da capital e a Coimbra Editora. Por todos passam vidas, num desejo grande de as contar, povoadas por crianças muitas vezes, mas sobretudo por personagens femininas – a solidão de uma professora (“Raquel, Raquel, Raquel”), o ciúme a atiçar o contrabandista e a faina dura de uma mulher que trabalhava para alimentar sete filhos de sete pais (“Papoila vermelha”), uma história de amor inventada entre solidão (“Catarina”), a viuvez de uma mulher que vira “barco sem vela” (“O marido que Deus tem”), a angústia perante o silêncio (“Atlântico”), a mistura dos sentidos e dos sentimentos (“Sala de espera”), a consciência do crescimento a partir do olhar sobre o corpo (“A menina das pernas grandes”), a ocupação do tempo e as distâncias sociais (“O aquário”).
A mais extensa narrativa assume o título do livro e surge pela voz de um narrador masculino, Manuel, em catorze partes. História contada em jeito de memórias ou de autobiografia, o relato de Nelo é uma entrada pela sobrevivência e pela descoberta do amor, redigida num momento de doença vivida em seis meses de hospital, forma que a personagem descobre para se despedir de histórias do seu passado numa aldeia da zona monçanense e para encetar nova vivência do amor na capital, seduzido pela insistência da enfermeira que lhe vai lendo esses escritos um pouco às escondidas.
As vidas que perpassam por estes contos são marcadas pelo sofrimento e pela tristeza, pela doença e pelas dificuldades da vida, pela desprotecção e pela miséria, pelo trabalho infantil e pela solidão, numa permanente insatisfação medida na distância que vai entre a realidade e o sonho, muitas vezes com refúgio num imaginário salvífico, conjunto favorecedor de retratos de denúncia, intensos na estética neo-realista.
A aceitação do destino é bem descrita por Nelo: “A gente não sabe como as coisas começam, não. Primeiro são as folhas que caíram, a fazer remoinho. Depois sem mais começa o vento que até arranca as árvores. E nós somos o canavial que vai ficando moído sem se quebrar…” Quando Matilde Rosa Araújo dizia, na entrevista ao “Século Ilustrado”, que a literatura seria “verdade e redenção”, estaria, com certeza, a defender esta personagem, que, para tentar dar a volta ao destino, optou pela escrita para se libertar, para encontrar a redenção…