O título fala-nos da vastidão do Mediterrâneo e da vontade de vencer esse espaço – “Uma esperança mais forte do que o mar”, assinado por Melissa Fleming, editado em Portugal em 2017, conta a luta de Doaa pela sobrevivência, refugiada síria que sofreu a instabilidade do seu país, os vexames dos traficantes que garantiam a viagem até à Europa e um naufrágio provocado que a levou a conviver com a morte.
A narrativa, na terceira pessoa, resultou de longas horas de conversa entre a autora e a protagonista entre Abril de 2015 (primeiro encontro) e Agosto de 2016 (conclusão do escrito). Quando Fleming quis ouvir a narração da fragilizada Doaa, a resposta foi: “Pergunte-me tudo o que quiser. Esta é a minha vida e tenho de a aceitar.” A fechar esta história, há uma nota da jovem, que, falando da situação de refugiada, proclama: “A perigosa viagem em que os refugiados embarcam, com o sonho de alcançarem a segurança na Europa, conduz frequentemente ao desespero e à morte. Continuamos, porém, a colocar as nossas vidas nas mãos de traficantes cruéis e impiedosos, porque não temos outra alternativa. Temos sido confrontados com os horrores da guerra e com a indignidade de perdermos as nossas casas, e o nosso único desejo é viver em paz. Não somos terroristas, somos seres humanos como qualquer um de vós. Temos corações que sentem, anseiam, amam e sofrem.”
Grito lancinante, este, que fica a remoer, sobretudo depois de termos lido o que levou Doaa a abandonar o seu país, o relato do que ela passou entre Novembro de 2012, data em que saiu com a família de Daraa, a cidade-natal, rumo ao Egipto e a vida neste país, sempre no registo da insegurança, e a narrativa da viagem e das contrariedades sofridas a partir de 15 de Agosto de 2014, na travessia do Mediterrâneo para a Europa, tendo sobrevivido naufragada no mar por quatro dias e quatro noites, ao mesmo tempo que cuidava de duas crianças que lhe foram entregues na ocasião do naufrágio – uma luta pela vida em momentos dominados pela morte, pois que do meio milhar de embarcados muito poucos sobreviveram. Em todo este trajecto, há ainda uma intensa história de amor – a vida de Doaa no Egipto mostrou-lhe a paixão personificada em Bassem. Tendo-se tornado noivos, são ambos a partir em busca da Europa, mas o namorado morreria no naufrágio de que foram vítimas.
É uma história de sobrevivência emocional e humana aquela que passa nestas páginas, com momentos fortes que levam o leitor à indignação, à piedade, ao medo, à solidariedade. Uma narrativa que não esconde os perigos e as fragilidades ou o direito à procura da felicidade, num mundo que é o nosso, em que as notícias dos refugiados chegam associadas ao perigo de viver ou de atravessar os Mediterrâneos ou as Manchas que nos separam da paz.
Como funcionária do ACNUR (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), Melissa Fleming doseia a narrativa com alguns elementos sobre o contexto dos refugiados para que a narração do caso individual de Doaa Al Zamel (e de sua família), tal como aquelas fotografias de momentos dos refugiados que nos chocam muitas vezes, acabe por revelar a alma de toda uma multidão que, frequentemente, nos surge como anónima e despersonalizada.
É um testemunho de dádiva que nos interpela em cada página, mostrando-nos, no final, o sonho de Doaa: “Espero regressar um dia à Síria para poder voltar a respirar. Nem que seja só por um dia. Seria o suficiente.”