Começarei por duas citações, uma de um poeta, outra de um editor, ambas de quem escreve e vive os livros — a primeira, de José Tolentino Mendonça, que nos lembra que “em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada”; a segunda, de Serafim Ferreira, a considerar que “o livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem”.
A razão destas escolhas cruza-se com o papel que Daniel Pires tem tido no enriquecimento do que podemos chamar uma bibliografia setubalense, não só pelo contributo que tem trazido desde há muitos anos para os estudos bocagianos —editando a obra de Bocage (nas Edições Caixotim, a partir de 2004, e na Imprensa Nacional, entre 2017 e 2018) ou contribuindo para o seu estudo (“Bocage e o Livro na Época do Iluminismo” e “Bocage – A Imagem e o Verbo”, ambos de 2015, “Bocage ou o Elogio da Inquietude”, de 2019, “O Essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage”, de 2023, além de outras obras em que colaborou), títulos necessariamente relacionados com Setúbal, quer pelas circunstâncias biográficas, quer por algumas alusões, ainda que escassas, de Bocage à sua região de origem —, mas também pelo que tem posto a descoberto no domínio do conhecimento sobre Setúbal, fazendo ressurgir textos do pó dos tempos e construindo outros a partir das suas investigações e demandas por arquivos e bibliotecas várias, todos eles iluminando o que tem sido a aventura da identidade na região dominada pela Arrábida.
E será justamente pela serra que entramos, uma vez que, como tema, ela consta já na tradição literária portuguesa, desde, pelo menos, o século XVI. Durante muito tempo, referências literárias da Arrábida foram dominadas por uns poucos nomes, a começar em Frei Agostinho da Cruz, passando por Alexandre Herculano e desaguando em Sebastião da Gama. No entanto, a persistência de Daniel Pires e de António Mateus Vilhena possibilitaram ao leitor a pluralidade dos muitos olhares que sobre a Arrábida têm surgido na literatura lusa, desde que, em 2002, publicaram a obra “A Serra da Arrábida na Literatura Portuguesa”. Se, nessa edição, nos mostraram cerca de meia centena de poetas que versejaram sobre a serra que Pascoaes confessou ser o verdadeiro “altar da Saudade”, como nos contou Sebastião da Gama depois da visita que lhe fez em Setembro de 1951, quando saiu a segunda edição, em 2014, o número de autores subia já para cerca de oito dezenas, com textos escritos num período temporal entre o século XVI e 2014, valendo a pena atentar na justificação que os antologistas apresentam nos prefácios de ambas as edições: a pretensão foi a de “dedicar especial atenção ao património cultural da cidade de Setúbal, contribuindo, desta forma, para a sua valorização e para a preservação de uma memória que faz parte integrante da nossa identidade”, tarefa resultante de investigação “metódica em vários arquivos e bibliotecas nacionais”, partilhando textos que estavam “dispersos por livros ou periódicos de muito difícil acesso”, assim contrariando “a impossibilidade da sua fruição pela maioria das pessoas”.
No mesmo ano de 2014, os dois investigadores avançaram também na publicação da obra “Descrição da Arrábida”, a partir de manuscrito guardado na Biblioteca Nacional, contendo o texto do franciscano madeirense Inácio Monteiro, assim pondo a descoberto uma obra de referência no domínio da literatura de viagens em Portugal, simultaneamente um bom exemplo da “estética literária barroca”, que descreve “a paisagem envolvente” e os dois conventos arrábidos, dá “informações relevantes no domínio arquitectónico” e apresenta “ampla visão da natureza em estado puro e uma panorâmica de resultado da acção humana sobre ela exercida.” Este trabalho, construído no confronto de dois manuscritos e de uma versão publicada no jornal “O Azeitonense” (em 1920), trouxe ainda luz sobre o seu autor, que, até esta edição, se supunha ser um jesuíta oriundo do Norte do país, com vida feita em Roma e falecido em Ferrara…