8 Maio 2024, Quarta-feira

Sonhando

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Passou um bem disputado período eleitoral. Passaram as eleições com boa participação

Cheguei a Setúbal em Fevereiro de 1923, já lá vão uns 70 anos. Acabado o meu curso de Medicina, em Coimbra, com uma bolsa de estudo, fiquei sem dinheiro e sem emprego, mas o destino colocou no jornal o pedido de dois médicos para um serviço de urgência no Hospital do Espírito Santo, em Setúbal. Nem pestanejei e aceitei de imediato tal emprego (eu e um primo na mesma situação). Setúbal, cidadezinha perto de Lisboa, o grande centro médico do País, era o ideal para, logo que possível, dar o salto. O Hospital do Espírito Santo ocupava as instalações do velho Convento de Jesus, ao lado do imponente mosteiro – uma jóia. Setúbal era uma cidadezinha pobre vivendo ainda no seu período áureo das inúmeras fábricas de conservas e trabalhando em pleno durante a Grande Guerra em que se vendia para os dois beligerantes. Ao tempo da minha vinda havia ainda uma meia dezena de fábricas. Os conserveiros, os donos das traineiras e mestres e meia dúzia de famílias com pretensões de sangue azulado, eram a classe média e alta pois o resto da população vivia no limiar ou mesmo na pobreza. Tínhamos uma cidadezinha velha e pequena e imensos bairros de lata nos seus extremos, o casal das figueiras e as três azinhagas do Mal Talhado e o Peixe Frito. As traineiras chegavam com o peixe com um bando de gaivotas a acompanhar, e as fábricas tocavam as suas sirenes e aí vinham em bando as mulheres para o trabalho. Em volta da cidade os imensos Laranjais característicos também da cidade. O Hospital tinha duas enfermarias enormes, meia dúzia de quartos, sendo um o nosso lar durante uns três anos, uma sala de operações, um banco para as urgências e duas salas improvisadas sob as arcadas do claustro. Ora durante estes anos esta cidade cresceu, modernizou-se e, ultimamente, alindou-se. O progresso foi aparecendo com novas indústrias, além da Secil que dum lado ia “comendo” a serra para a transformar em cimento, e a Sapec, do outro lado, um grande centro fabril que tratava minérios entre outras coisas. O velho hospital é substituído por um moderno para servir toda esta vasta região e dos cerca de trinta médicos quando cheguei passou-se para umas boas centenas. As suas praias começaram a atrair as gentes em ambos os lados do belo estuário do Rio Sado, em especial a Tróia, que se torna um popular centro turístico. Os turistas começaram a ser atraídos pelo bom peixe que por aqui se comia. As constantes cheias que inundavam a cidade logo que chovia mais foram resolvidas com o túnel para a ribeira do Livramento e pelos túneis trazendo as águas do lado da casa Branca e outro do lado da praça de touros – uma bela obra de Mata Cáceres de que pouco se fala e que se debate agora em Lisboa. A cidade cresce, aparecem os supermercados, a indústria automóvel, organiza-se e apetrecha-se o porto. Tudo sob o olhar altaneiro do castelo de S. Filipe e a conservação da serra da Arrábida. Mais modernamente, a cidade alinda-se com espaços verdes, as rotundas da moda, os prédios coloridos. Que tremenda a evolução desta NOSSA cidade pois a considero como minha sendo que por cá casei, e já vou na quarta geração, por cá dei muito do meu esforço e do meu trabalho – como médico e como cidadão activo. Ultimamente retido em casa pela covid-19 e pelos efeitos inevitáveis da idade, e por uma quase cegueira grave, há muito tempo que não saía de casa. Mas no domingo saí da ‘toca’ e fui “ver o Bocage”. Sentei-me numa das esplanadas das várias existentes, cheias de gente em amenas conversas e…sonhei. Pela minha ainda excepcional memória passaram grandes fases da transformação de Setúbal – o Verão Quente, as disputas de D. Manuel, nosso primeiro Bispo, com Mário Soares no governo, com o Zeca Afonso, meu contemporâneo em Coimbra, com Maria L. Pintasilgo, de quem fui mandatário por aqui, com a Cooperativa, com a comissão do meu bairro e até com a comissão de trabalhadores da Secil. Estava-me sabendo bem-estar ali. Mas eis que um barulho ensurdecedor dum homem aspirando as folhas secas veio trazer um incómodo inaceitável, pelo menos aquela hora. Regressado à realidade esqueci os alindamentos e lembrei o nosso hospital com falta de médicos e insuficiente para a região que cobre, lembrei um tal problema com a tendência de refugiados ucranianos, vi no local onde era a esplanada do café central uns horrendos tejadilhos negros – e lá se foi o meu sonho de activo setubalense, trânsfuga de Coimbra. Às vezes pequenos nadas trazem para a frente coisas mais graves!

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