1 Maio 2024, Quarta-feira
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Mário Moura: “Temos uma partidocracia, estamos longe de uma verdadeira democracia”

Este é o resultado do “raio-x” feito à actualidade portuguesa pelo médico de 96 anos, que fala sobre os relatórios da PIDE de que foi alvo. O clínico aborda “confissões” que publicou recentemente em livro e uma nova obra que vai lançar antes do Natal. E mostra muita fé no novo bispo de Setúbal

 

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O médico, autor e cristão acaba de completar 96 anos e apresta-se a lançar, antes do Natal, mais um livro: “A Revolução da Ternura”. Uma obra que surge pouco depois de ter publicado uma outra, intitulada “Confissões” e que coloca a nu a vida de intenso amor trilhada com a sua cara-metade – a falecida esposa Ana Maria.

Em entrevista a O SETUBALENSE e à Rádio Popular FM, Mário Moura “abre as páginas” de uma e outra edição, ao mesmo tempo que se debruça sobre os tempos em que foi vigiado pela PIDE sem nunca o saber (até recentemente) e também sobre a actualidade de um mundo “louco”. Quando caminhamos a passos largos para as comemorações do cinquentenário da Revolução de Abril, afirma que vivemos “uma partidocracia, longe de uma verdadeira democracia”. E fala sobre o novo bispo de Setúbal, em quem deposita enorme fé.

Costuma assumir-se como um setubalense de Coimbra…

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… Nasci em Coimbra, sou de uma família modesta, o meu pai era empregado dos Correios. Na minha época só ia para a universidade gente da classe média-alta e alta. Nunca me passou pela cabeça que iria formar-me. Felizmente, no liceu acabei o 7.º ano com vários 20 e o Salazar, apesar de tudo, ainda tinha bolsas de estudo e foi-me concedida uma bolsa. Fiz o curso de Medicina todo com uma bolsa de estudo. Terminei o curso e fiquei desempregado. Poucos dias depois num jornal, no Diário de Notícia salvo erro, vi um anúncio a pedir dois médicos para o serviço de urgência do Hospital Espírito Santo em Setúbal. Nem sabia bem onde era Setúbal. Curiosamente, formei-me no mesmo dia que um primo meu, Rui Moura, e uma irmã dele, Maria Amélia Moura. Até veio no jornal que de uma classe média tinham-se formado três médicos no mesmo dia. Eu e o meu primo olhámos para o anúncio e decidimos responder. E viemos para Setúbal…

… Mas depois houve algo que acabou por o prender definitivamente a Setúbal.

Ora bem. Na realidade cruzei-me na sala de observações do velho hospital com uma rapariga de 19 anos, linda como os amores, e encantei-me por ela. Tinha os seus problemas, tinha estado para casar e não casou e fez uma tentativa de suicídio. Por isso foi parar ao hospital. Eu tinha já comigo um lema, de que a relação do médico com o paciente tinha de ser: “olhos nos olhos, pele com pele”. Sentei-me, peguei-lhe na mão para lhe “contar” o pulso – era a pele com pele e os olhos nos olhos. Contou-me toda a tragédia que tinha vivido. E ao fim de algumas horas tive de lhe dar alta. Mas, fui vê-la a casa, uma vez ou duas, talvez já um bocado forçado. O nosso contacto continuou diariamente, por telefone ou por carta. E foi-se desenvolvendo numa paixão de loucura.

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Que terminou em casamento…

Evidentemente. E consegui desenvolver-lhe, como paciente, outra vez o gosto pela vida. Eu era ateu e a família queria que ela casasse pela igreja. Tive de pedir uma autorização à igreja para que permitisse que uma católica casasse com alguém de outra religião ou até ateu. Fomos a Fátima para casarmos. E começou uma vida de amorosidade.

E também a sua conversão à religião católica?

Nessa altura ainda não. Cometi a minha primeira asneira, que foi pedir-lhe que deixasse de trabalhar, era professora. Era outra época e pensava que um amor de tanta intensidade se devia consubstanciar em filhos. Tivemos quatro filhas e um filho. Neste momento tenho mais 12 netos e oito bisnetos. Depois acabei por me converter… Antes, estudei em Coimbra desde o 1.º ano do liceu até ao último ano da universidade com um colega que era católico. E, pouco a pouco, foram acontecendo coisas que me chamavam a atenção…

Foi um resistente à ditadura e vigiado de perto pela PIDE, mas só o soube recentemente através da publicação de um livro da autoria de Albérico Afonso. O que aconteceu naquela altura?

Saiu há dias esse livro sobre a resistência dos católicos ao fascismo e sou citado muitas vezes como que quase o chefe da oposição. Não sabia que tinha tido uma sombra. Tenho em minha posse 16 ou 18 cartas da PIDE de Setúbal para Lisboa. Entretanto converti-me [à religião católica] e tomei conta do jornal da Diocese, o Notícias de Setúbal. E todos os dias tínhamos de ir ao censor, que era um capitão reformado, o capitão Almeida.

Portanto, a PIDE tinha relatórios sobre si. O que diziam?

Muitos. Não só daqui de Setúbal. Também de Coimbra, porque fui director da Associação Académica durante dois anos. Esses relatórios descreviam todos os meus passos, com coisas às vezes caricatas. Uma delas diz assim: “Vai para férias com uma ‘roulotte’”. E depois com um comentário de quem o assina: “Sabe-se lá para quê”. Coisas ridículas. Mas era uma sombra que andava atrás de mim. Eu era amigo do Zeca Afonso. O seu irmão mais velho era um dos meus maiores amigos em Coimbra. Ainda participei numa ou duas serenatas com ele. Quando o conheço [Zeca Afonso] em Setúbal já ele tinha sido expulso do liceu. Era professor e andava muitas vezes com ele. Isso também era suspeito.

Por que acha que nunca foi detido?

No fundo, nunca tomei nenhuma atitude… Eu apenas era palavra escrita e peneirada pelo censor. Nesse tempo já me tinha convertido [à religião católica] e quando vem o primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, ele tinha um comportamento diferente da generalidade dos bispos e cardeais. Era um homem que andava na rua, que andava de bicicleta, que colaborou nas greves, esteve dentro de fábricas quando o pessoal se metia lá dentro… O que eu escrevia e que o censor, apesar de tudo, deixava passar tinha essa tonalidade de participação na vida social, de combater a pobreza, combater esta orientação que se foi impondo de que a pessoa tem de ter cada vez mais coisas em vez de ser melhor. Esta concentração dos bens é uma coisa que já no meu sentir de cristão estava errada. E tivemos a sorte de D. Manuel Martins pensar da mesma maneira. Os outros bispos que vieram a seguir já não pensaram da mesma forma.

Que opinião tem do novo bispo de Setúbal, D. Américo Aguiar?

Conheço-o apenas por todas as entrevistas que ouvi e li com muita atenção e, com a minha mania e capacidade de tentar perceber pela maneira como as pessoas falam, acho que é um homem firme, moderno, por isso foi nomeado cardeal. Fiquei com a convicção de que é um homem profundo, que sabe o que quer, digamos, de pulso e com capacidade de ouvir as pessoas.

Como vê hoje a democracia, a actividade política e aquilo que se vive no mundo que parece estar louco?

Não parece, está! Muito desiludido. Costumo dizer que não temos uma democracia, que temos uma partidocracia. É o cacique local que tem um certo poder, cria um grupinho, é ele que dá a opinião para o outro delegar acima, esse para o outro e todos ficam com compromissos e com favores. Acho que estamos longe de uma verdadeira democracia, em que toda a gente se pronuncie.

É autor, tem escrito alguns livros sobre participação cívica…

… Comecei por escrever livros médicos. Escrevi o primeiro depois de ver nos jornais que estava aberto um concurso para escritores médicos. Num mês escrevi 20 histórias clínicas e mandei para lá. Foi editado por eles [organização], teve uma menção honrosa, não teve o primeiro prémio, e intitulava-se “Do lado de lá do sintoma”. Depois desse livro, escrevi mais três livros científicos, um deles a dar sequência ao primeiro. Entretanto houve um laboratório que criou uma colecção de contos médicos e que durou 10 anos. Para cada uma das 10 publicações escrevi um conto. E, há uns meses, juntei os contos todos e publiquei-os num único livro, acrescentando mais um conto sobre a tal minha paixão e ainda um outro qualquer sobre a evolução da cidade de Setúbal.

Até chegarmos ao mais recente, intitulado “Confissões”. Fale-nos um pouco desta obra.

Sempre fiz diários, onde escrevia as coisas [as vivências próprias do dia-a-dia]. Mesmo dentro do tipo de vida brutal que tinha [com um horário de trabalho sobrecarregado], num recanto da minha casa lia ou escrevia até às 2 ou 3 da manhã. Sempre fiz o meu diário, que conta tudo o que sinto, particularmente descreve como foi evoluindo a paixão com a minha mulher e os momentos em que um casal tem também os seus problemas. E resolvi publicar [essas ‘Confissões’]. E o que fiz? Para dar um ar de romance, misturei os capítulos. Em vez de começar no dia não sei quantos de Fevereiro de 1952 em que cheguei cá [a Setúbal], faço uma descrição actual e depois misturo os capítulos. Mas não cortei absolutamente nada. No dia em que o livro foi apresentado disse: “quem ler isto, vê-me nu”.

É uma história de vida.

É, com todos os pormenores positivos e negativos. Não sei se deva dizer isto, mas digo: especialmente, por causa do problema da sexualidade. Uma senhora minha amiga, que não via há muito tempo, deu-me um abraço e disse-me: “Vou começar a ler o teu livro, diz que é pornográfico”. Mas, não é nada pornográfico. Resolvi publicá-lo porque é uma história de vida, é uma história de uma conversão que pode ajudar alguém, é uma história de uma relação amorosa absolutamente fora de série. E pensava: se houve o Tristão e a Isolda, o Romeu e a Julieta, por que não há-de haver o Mário e a Ana Maria?!

Entretanto, prepara-se para lançar ainda neste mês mais um livro: “A Revolução da Ternura”. Pode levantar-nos a ponta do véu?

Quando a Diocese de Setúbal fez 20 anos publiquei uma colectânea de textos. E pensei publicar também aos 40 anos, porque continuei sempre a escrever. Só que a minha mulher esteve terrivelmente doente durante quatro anos, parei e não publiquei. Pensei então publicar aos 50 anos [da Diocese], que é para o ano, mas para o ano já cá não estou, então é já. E pronto, juntei uma quantidade enorme de textos, 90 por cento ou mais publicados n’ O SETUBALENSE. Está no prelo e há-de sair uns dias antes do Natal. Tem um capítulo só com acontecimentos do mundo, vistos pelos olhos de um cristão, tem outro que é a palavra do Papa Francisco, e depois artigos dos tempos litúrgicos. Juntei, no fim, o documento da nossa Diocese para o Sínodo lá de Roma e um comentário meu a esse documento. Chama-se “A Revolução da Ternura”, precisamente por essa ser uma expressão usada pelo nosso Papa. É que o mundo tem de ser, todo ele, orientado pelo amor, pelo afecto, pelas entreajudas. E o que estamos a ver? Andamos todos a matar-nos uns aos outros, a explorar-nos uns aos outros, a vigarizar-nos uns aos outros. Fica uma certa esperança quando vemos a juventude, como o milhão e meio na Jornada Mundial da Juventude, mas esses não têm o poder nas mãos.

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