Em 1943 cheguei a Setúbal para iniciar a minha vida profissional. Pouco ou nada conhecia desta cidade, apenas que por aqui se fabricavam conservas de peixe.
Era nessa altura uma “cidadezinha”, pobre, rodeada de bairros de lata e… de laranjais no meio dos quais estava a estação dos comboios, o que me fez carregar duas pesadas malas até encontrar alguém que me dissesse onde era o Hospital do Espírito Santo, improvisado nos restos dum convento junto à Igreja de Jesus. E vim pela necessidade de ter um emprego e… dar o salto para Lisboa onde prosperava a Ciência médica… a valer, que me atraía. Aos poucos fui conhecendo esta boa gente que aqui vivia especialmente nos bairros pobres, pois a classe a que chamamos média era bem escassa juntamente com umas três ou quatro famílias a que chamei “da alta”.
E com a minha medicina baseada numa relação de simpatia e com a minha rápida inserção nas classes que reivindicavam liberdade e melhores condições de trabalho, pois se vivia em ditadura, rapidamente me “senti em casa”. E tendo até casado com uma bela setubalense, não passou muito tempo que me sentisse verdadeiramente setubalense.
As pessoas simpáticas e acolhedoras, e (depois do 25 de Abril) este povo de Setúbal revelou-se um povo empreendedor e lutador acolhendo sempre bem e integrando correntes migratórias do Alentejo e até gentes do norte para trabalhos sazonais.
E o tempo corre, os anos sucedem-se, a cidade cresce, nascem indústrias, implementa-se as pescas – tudo isto em redor dum estuário fantástico do “rio azul ”sob o olhar do castelo de S. Filipe, esta gente trabalhadora e reivindicativa foi-se politizando, sempre predominando forças a que é uso chamar-se de esquerda com a característica de pôr sempre a tónica nos problemas sociais.
O tempo não pára, nasce a Troia e o turismo passa a ser mais um caminho de progresso. E nos últimos anos Setúbal continua a crescer e a… alindar-se, deixando de ser uma “cidadezinha” com um porto de qualidade.
Aos poucos, sempre colaborando como podia nesta transformação de Setúbal, comecei a deixar nos fundos do meu sentir a minha origem coimbrã, e passei a considerar, e a ser, de alma e coração, “um setubalense”, pois aqui deixei décadas de intenso trabalho e de intensa intervenção cívica, aqui deixo muito suor e lágrimas, como é uso dizer-se. Que linda cidade e que povo tão trabalhador e acolhedor! E os dirigentes eleitos por este povo de qualidade têm sido e têm de continuar a ser o seu espelho! E o mundo lá por fora também não pára.
Começa a guerra na Ucrânia, e começa o êxodo das mulheres e das crianças fugindo da barbária, e, fiel à sua maneira de ser os setubalenses em geral recolhem bens essenciais, organizam viagens diretamente para a fronteira da Ucrânia para trazer refugiadas crianças para um meio de paz e segurança! Mas, ou surpresa das surpresas, há quatro ou cinco dias não há canal da TV que não inicie o seu noticiário falando de Setúbal… e não por bem. Jornais fazem primeiras páginas falando igualmente de Setúbal e da sua Câmara! Mas será que me enganei e a tal cidade acolhedora deixou de o ser?
Quem explica o que aconteceu? Se houve erros ou má fé, é necessário explicar, investigar, avaliar e… punir se for caso disso. Não quero ver Setúbal, a minha Setúbal, nas “bocas do mundo”! Será que me enganei, será que fiz uma avaliação superficial? Quem explica e põe as coisas no que são? Eu não quero deixar de ser Setubalense!