Andam os noticiários cheios de críticas ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), com dificuldades insuperáveis, como urgências fechadas, ambulâncias atrasadas, falta de médicos ou enfermagem, especialmente “portas fechadas” para parir a tempo e horas e em segurança.
Estes problemas com a grande conquista do nosso 25 de Abril – SNS público – afecta-me em particular porque sou médico, porque entendo que a saúde das populações é uma obrigação dos poderes públicos e porque participei activamente na construção do nosso SNS. Não se admirem desta afirmação pois me aproximo de ser centenário. E estou lúcido!
Talvez seja conveniente fazer um pouco de História.
Em 1978 , avançado o processo civilizacional, reuniram-se numa cidade da então URSS, chamada Alma Ata, os governantes dos principais países para equacionar os problemas da saúde das populações e, depois de intensos debates sob a égide da Organização Mundial de Saúde (OMS), saiu uma conclusão: Se os hospitais eram o cerne do tratamento, muita doença, muita queixa e sofrimento poderiam ser contidos antes da sobrecarga dos hospitais (algo que hoje se está verificando) e que, portanto, eram necessários cuidados primários de saúde. Algumas estatísticas mostravam que, de 1000 pessoas com queixas, apenas uma necessitaria de cuidados hospitalares. Saiu por isso de Alma mata a necessidade de os Estados organizarem Cuidados de Saúde Primários.
Alguns anos depois nasce o serviço de saúde em Inglaterra com grande repercussão no mundo, ou pelo menos na nossa Europa. Ainda no tempo da ditadura salazarenta fazem-se em Lisboa reuniões médicas sob o impulso do Prof. Miller Guerra – germinavam os cuidados primários! Havia em Portugal um esboço de medicina organizada: Os serviços medico-sociais da Caixa de Previdência, alem da luta contra o flagelo da tuberculose e um esboço de cuidados de saúde infantil.
E surge a alvorada da liberdade com o 25 de Abril, de que comemoramos o cinquentenário! As universidades abrem-se e os alunos de medicina crescem nesses primeiros anos. Alguém tem a boa ideia de os distribuir pelo País sem qualquer assistência e em grande pobreza. Os médicos jovens assumem essa realidade e tudo isso faz nascer o desejo dum serviço de saúde. Nasce a ideia de fazer da Clínica Geral uma verdadeira especialidade que a muito breve tempo evolui para Medicina Geral e Familiar. Os médicos jovens formam uma associação com a ideia dum serviço nacional de saúde que toma forma e é criado com a sua fileira tecnológica hospitalar e com a necessária linha de cuidados primários- Por força da evolução internacional e da pressão empolgante da Associação dos Médicos de Família, o nosso SNS toma forma. Foi necessário convencer médicos, professores e faculdades e convencer o poder – a máquina ministerial.
Larguemos a história e analisemos a realidade. O SNS está de rastos e os últimos governos não pegam no assunto como deve ser. Há falta de meios (dizem), há falta de médicos (e parece que é verdade) mas há uma falta confrangedora de alguém que “ponha o dedo na ferida”, isto é, que nos dê a noção de saber o que há a fazer. Há falta centros de saúde? Criam-se centros privados (chamados “modelo C”). Negoceia-se com sindicatos que só falam nos pagamentos, no preço hora, no pagamento de horas extra, etc.
Meus caros leitores, num centro de saúde é necessário uma dose de autonomia – isto é essencial –, que haja uma carreira, que de tempos a tempos um medico saiba que sobe de escalão, que ganha mais, mas tem de fazer provas para progredir, pode ser remunerado de harmonia com objectivos, o que lhe dará energia, e, fundamentalmente, o médico tem de fazer medicina integral, tem de conhecer o seu paciente, a sua circunstância envolvente, os problemas dele e da família, pois ninguém adoece só dum órgão, toda a gente adoece no seu todo e na “sua circunstância envolvente”. Porque será que ainda não ouvi ninguém pôr o problema com esta acuidade? Será que pouca gente, nesta época tecnológica, conhece que os afectos e as relações deixaram de ser a pedra angular da actividade dos médicos de família e que é para isso que lhes tem de ser dadas as condições? Dar-lhes o gosto e desejo de serem cada vez mais eficientes, dar-lhes algumas condições de liberdade de acção, dar-lhes férias e a devida remuneração. Dar-lhes gosto de ser médico, conselheiro e amigo do seu paciente. Não há muito tempo ouvia dizer com ternura “o meu medico de família”!
Eu sei que os dois anos de Covid com os médicos de família a acompanhar pelo telefone os doentes da infecção que não necessitavam do Internamento, destroçou uma organização que já nessa altura começava a ter deficiências, mas agora não temos a epidemia a dominar as nossas vidas.
Caros leitores, no início dos nossos Cuidados de Saúde Primários coube-me apenas uma pequena partícula mas não deixei de saber o que é – ou deve ser – um médico de família! E não esqueci que não é à medicina privada que cabe a verdadeira responsabilidade da saúde do nosso povo, mesmo à beira duma guerra total ou dum grave desastre ecológico!