4 Maio 2024, Sábado
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500 Palavras: Álvaro Laborinho Lúcio e a pergunta fundamental (1)

No tempo da pandemia, um homem, que vivia sozinho em modesto apartamento, descobre, por motivos de arrumações, a viola há muito abandonada; tenta rearrumá-la debaixo da cama, mas o espaço vazio não o permite; o homem pega na viola e começa a lembrar os acordes há muito silenciados; insiste e a música leva-o ao canto; lembra-se de compor; canta e surpreende-se porque há uma voz feminina da vizinhança que o acompanha; um dia, ao abrir a porta que dava para a escada, vê a vizinha, adivinhando-lhe o rosto, então tapado por máscara; a cena repete-se no dia seguinte e ambos acabam por viver uma paixão. Com o fim da pandemia, a história sofreria alterações – “Tudo voltaria a ser como dantes. Era a peste que voltava. António arrancou a máscara e perguntou: ‘Como foi possível? Tanto tempo aqui, sem sabermos de nós?’ E a mulher, de máscara posta, respondeu: ‘Pudera! Éramos vizinhos!’”
Esta é uma das histórias que corre no mais recente livro de Álvaro Laborinho Lúcio, “A Vida na Selva” (Quetzal Editores, 2024), obra apresentada em quatro partes, todas intituladas numa relação com o itinerário que se nos apresenta como vida — “Tempos de nascer”, “Tempos de voar”, “Tempos de lutar”, “Tempos de partir”. “Tempos”, sempre no plural, porque não são determinados ou calendarizados, porque não são únicos, porque é a diversidade de uma vida que vai arrumando os eventos que a fazem de acordo com a importância que eles têm; ainda assim, pode-se entender a sequência que envolve o trajecto entre o “nascer” e o “partir”, passando pelo “voar” e pelo “lutar”, fases que implicam despertares, aprendizagens, acções, despedidas, sempre envolvendo os outros, aqueles com quem se trilha o caminho ou que encontramos no itinerário.
São 19 crónicas (em que se mistura memória, ficção e reflexão) e um prefácio e um posfácio, tudo na conta do autor, que começa com uma confissão, simultaneamente provocação: “não gosto de prefácios”, abrindo excepção para os que são de autor “ou os grandes pórticos, aqueles que são já mais oferta do que simples convite”, preferência que desenvolve através da metáfora do olhar, ao estabelecer a distância que vai entre a “espreitadela”, momento furtivo, e o acto de “espreitar”, forma de “procura permanente” que aproxima quem escreve e quem lê, que valoriza o exercício da palavra na sua relação com as formas de estar no mundo e na vida, o pensamento livre e crítico, a dignidade da utopia, esse espaço irrealizável que vive sempre connosco. Saltando para o final do livro, surge um posfácio, tempo que deveria ser feliz para o leitor (apesar de ser também o momento que anuncia a sua separação de todo aquele manancial de dizeres), porque deveria competir ao leitor ser o autor do posfácio, forma de releitura e de completamento da tarefa de escrita. Um desafio, pois. Mas é também o texto em que o autor explica que olhou para os dispersos e inéditos, releu-os e reorganizou-os, com um objectivo e uma pergunta: “Sempre com o fito de chamar e de juntar vizinhos. Como eu gostava que eles se chegassem. E, se assim for, que melhores vizinhos para quem escreve do que os seus leitores?”
Este livro, predominante na área do pensamento e do ensaio a partir de histórias vividas e, por vezes, condimentadas com a ficção, deixa perguntas, convida o leitor à inquietação, à saída do desconforto da normalidade, a viver a utopia dos sonhos e da procura de respostas, sugerindo sempre outras perguntas. É curiosa a forma como um texto intitulado “Autobiografia”, que poderia ser um recanto de certezas por relatar o passado, o vivido, se torna num olhar sobre a quantidade de vezes que se nasce – “Ninguém nasce de uma vez. Nascemos aos poucos, pelo tempo fora. Vamo-nos juntando à medida que nascemos. Vamo-nos desconjuntando à medida que vivemos.” E há a narrativa de episódios escolares desgastantes pelos maus prenúncios; o acompanhar o pai, trabalhador nos correios; as vivências juvenis na Nazaré; o compromisso cívico no tempo de estudante e da crise académica de 1962; a carreira pela magistratura e o aprender a julgar; o “tempo novo” aprendido nos Açores; os caminhos da escrita; as lembranças da família, sobretudo do avô, figura que espreita em várias crónicas.
A vida feita de perguntas vai encontrar eco no capítulo “Nossa Senhora das Perguntas”, um quase cântico à padroeira que intrigava a criança quando via o avô, homem “sem missas, sem preces, sem visitas clericais”, a curvar-se perante os campanários da igreja do Sítio, na Nazaré, tirando o chapéu e venerando o espaço, como se se verificasse um encontro do homem com a santa padroeira ou da santa com o homem… uma evocação que se conjuga com uma outra reflexão, sobre o voo, onde se encontra o Velho da aldeia que gosta das perguntas das crianças, porque elas determinam que voar é muito mais importante quando acontece no tempo do que no espaço – “Quem voa no espaço é levado por outros, voa com asas que são asas de outros. (…) Quem voa no tempo voa para dentro. Para a lonjura e a imensidão onde habita o humano e de onde brota o poema.”

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