A peça retrata o medo, a esperança e o heroísmo da pesca do bacalhau. Um punhado de homens confinados a um solitário lugre
O Teatro da Terra, companhia residente do Seixal, vai estrear ”O Lugre”, do dramaturgo Bernardo Santareno. A subida ao palco está marcada para 22 de Julho, no Auditório do Fórum Cultural, pelas 20h30.
“Depois de algumas representações no Seixal, partiremos em digressão pelo País. Não sabemos é quando, devido aos condicionamentos impostos pela pandemia. Mas, se não for ainda este ano, será no próximo”, disse a O SETUBALENSE Maria João Luís, directora e encenadora da companhia.
Quanto à escolha por Bernardo Santareno, comenta a actriz, – que começou nos palcos em 1985, no grupo de Teatro A Barraca – que “não é a primeira vez” que trabalha autores desta geração, ligados ao neo-realismo. E prossegue: “Para mim é um encanto abordar autores que nos descrevem a vida do povo, do trabalho, que nos falam da guerra colonial, da época negra do fascismo. Há gente nova que desconhece tudo isto. Eu sinto a responsabilidade de desenterrar tudo isso, através de escritores e dramaturgos neo-realistas, por quem me sinto fortemente atraída”.
Como movimento cultural, salienta que o “neo-realismo é português, é único, como “são únicos autores como Soeira Pereira Gomes ou Carlos de Oliveira”.
“Sendo eu de Alhandra, Soeiro é, para mim, o pai do neo-realismo. Todavia, identifico-me perfeitamente com a escrita de Santareno, que é contemporânea, digamos, é como se ele estivesse a viver hoje entre nós. Não tenho qualquer dificuldade em pôr os actores a dizerem os textos de Santareno, que mesmo em prosa é de qualidade superior. É preciso muita coragem, como ele teve, para abordar, naquele tempo, temas como a homossexualidade entre homens, relações onde pode haver paixão”.
Corrigir o que está menos bem
A inspiração para fazer esta peça, revela que veio como homenagem a Fernanda Lapa, que morreu em Agosto de 2020, e de quem “ele gostava muito”.
“Só queria ser capaz de fazer mais e melhor. Mas também tenho falta de tempo, por exemplo, para montar aqui, no Seixal, uma exposição sobre a pesca do bacalhau. Mas sou responsável por três produções por ano. Afinal, tenho grandes actores. Venham vê-los! Nós precisamos de público!”
Quanto ao futuro, Maria João Luís afirma ser “uma mulher de planos”. “Programarei sempre a vida, pelo menos enquanto por cá andar. Procurarei transformar a minha profissão naquilo que deve ser, uma dádiva, um acto de carinho, uma actividade despreconceituosa. Vou tentar, sobretudo, corrigir o que me parece menos bem, vou lutar, através do teatro, pela justiça e igualdade”, afirma.
Em Setembro, adianta a actriz que o Teatro da Terra vai repor “A Pulga Atrás da Orelha”, de George Feydeau, que, por causa da pandemia, teve apenas a sua exibição de estreia, e, em Dezembro, “A Senhora Weigle”. “Diga-se que é a mulher de Brest, com texto de António Cabrita e encenação minha”, comenta.
Há sensibilidade no público do Seixal
Para a actriz e encenadora, qualquer público tem as suas particularidades, mas no “Seixal há muita sensibilidade para a cultura”. Isto deve-se, porventura, “ao evidente esforço e investimento da Câmara Municipal na cultura. Os espectáculos que levámos à cena estiveram sempre cheios de um público francamente interessado. Enfim, o que é preciso é levar as pessoas ao teatro, e aqui elas vão”.
“Há uma energia muito especial nesta margem do rio Tejo, que eu acredito ter origem na cultura operária, vinda da dureza dos tempos do fascismo. Há aqui uma política de reparação das injustiças que então se praticaram. Sabemos, contudo, que estas coisas não se fazem de um dia para o outro”, salienta.
Profissão dura e desumana
“O Lugre”, peça escrita em 1959 por Bernardo Santareno, aborda uma das profissões mais duras e desumanas: a pesca do bacalhau, praticada nos mares da Gronelândia desde o século XV. Num texto divulgador da peça, diz-se que “é uma aventura humana tão épica como dramática, ainda possível de conhecer diretamente pela boca daqueles que a viveram e que pretende contrariar a visão pacífica e oficial das condições de trabalho e de pesca divulgada pela ditadura”.
Ora, Bernardo Santareno andou embarcado como médico no navio-hospital Gil Eanes, hoje fundeado na doca de Viana do Castelo como museu, que dava apoio à frota de pesca nessas águas longínquas. Por conseguinte, o dramaturgo conheceu a vida escrava dos pescadores, os seus medos e esperanças, os seus conflitos e conciliações. “O homem é obrigado a confrontar a natureza e, ao fazê-lo, vê-se perante si mesmo e em oposição a outros homens. Um texto que dá a conhecer a vida dura de quem a arrisca quotidianamente e as diferentes reações humanas perante as adversidades”.