Moçambique no epicentro da polémica. Ex-autarca não nega informação do município, mas estranha não ter sido notificada pelos serviços para o acerto de contas. Feira de Valência em causa
A visita que Maria das Dores Meira teve agendada em 2020, enquanto presidente da Câmara de Setúbal, a Quelimane, Moçambique, foi cancelada e o município confirma que foi reembolsado pela Agência Abreu do valor da viagem (4.792,67€). Mas, a ex-autarca recebeu previamente ajudas de custo para essa deslocação ao país africano, que depois não devolveu ao município.
“Foi pago [a Dores Meira] o valor de 761,22€. De acordo com a informação recolhida junto da Divisão de Contabilidade e do Departamento de Recursos Humanos, não foi devolvido o montante referido”, afirma a autarquia, numa das respostas a um conjunto de questões enviadas por O SETUBALENSE a propósito não só da viagem (não realizada) a Moçambique como também das deslocações a Nova Iorque e Japão [ver caixa], no âmbito do Clube das Mais Belas Baías do Mundo, e ainda dos boletins itinerários referentes a quilómetros efectuados em viatura própria pela ex-presidente nos últimos anos.
Confrontada por O SETUBALENSE, Dores Meira diz estranhar que o município nunca a tivesse notificado para efectuar o devido acerto de contas e explica: “Daquilo que é meu conhecimento, à data de hoje, o boletim itinerário em causa terá sido lançado antes do cancelamento da viagem [a Moçambique]. O procedimento para esse tipo de situações é claro – quando há um cancelamento da viagem, e a pessoa já tenha recebido ajudas de custo, existe um acerto de contas nos recibos futuros. Por que razão a Câmara diz em vésperas de eleições que eu fiquei a dever, mas em momento algum me enviou uma notificação para um acerto de contas?”
A ex-autarca não nega a informação do município, mas coloca muitas reticências. “Parece-me óbvio que, se essa situação existisse, a Câmara devia ter-me notificado para fazer esse acerto”, defende. E garante: “Quando cessei o meu mandato procurei junto dos serviços garantir que as contas estavam todas saldadas e foi-me dito que não devia nada à Câmara. Se houvesse uma necessidade de acerto de contas, teria sido feito logo na altura. Os próprios serviços alertariam para essa situação.”
O problema de Espanha
O cancelamento da visita a Moçambique desmitifica a existência de um outro boletim itinerário, para o mesmo período, apresentado por Dores Meira, referente a uma deslocação da ex-autarca em viatura própria a Espanha, para participação numa feira. O problema é que não há registo da realização do evento – conforme também já havia sido avançado pelo jornal Público – e Dores Meira não esclarece se, de facto, efectuou essa deslocação, pela qual recebeu também ajudas de custo.
“Foram processadas ajudas de custo referentes a quilómetros percorridos em viatura própria no valor de 890,22€ com a menção ‘Feira de Valência’, de acordo com o boletim de itinerário apresentado pela dra. Maria das Dores Meira. Não existe nos serviços municipais mais informação sobre esta feira”, revela a autarquia.
Dores Meira diz apenas que “os actuais governantes da Câmara têm a informação de todas as viagens feitas pelo município e se não respondem é porque não querem”. “Será de bom tom que os actuais responsáveis não sejam agentes dadesconfiança sobre uma instituição séria [Câmara], com processos, documentos e pessoas [funcionários] que fazem o seu trabalho com honestidade”, junta.
O uso de viatura própria
Sobre a ex-presidente recaem suspeitas de uso abusivo de cartões de crédito do município e de alegado recebimento indevido de ajudas de custo no valor de dezenas de milhares de euros, que o Ministério Público está a investigar.
E a prática reiterada – todos os meses, pelo menos nos anos do seu último mandato na autarquia – de apresentação de boletins itinerários para receber ajudas de custo referentes a quilómetros efectuados em viatura própria poderá ser a questão mais delicada, de todo o processo, para Dores Meira.
De acordo com os boletins itinerários a que O SETUBALENSE teve acesso, a ex-autarca recebia mensalmente várias centenas de euros – em alguns casos o valor ultrapassava os mil euros – por quilómetros efectuados em viatura própria.
Sobre a utilização sistemática de viatura própria, quando tinha ao seu dispor duas viaturas do município e dois motoristas, a ex-autarca e candidata independente à presidência da Câmara nas próximas autárquicas defende que essa prática poupava dinheiro ao município, por um lado, e, por outro, permitia dar descanso ao motorista.
“Quando era presidente conduzia os veículos de que sou proprietária sempre que era necessário ou em situações cuja sua utilização era adequada. No cargo que exercia, como todos os setubalenses e azeitonenses sabem, trabalhava diariamente entre 10 a 14 horas, percorria inúmeros quilómetros, por norma também aos fins-de-semana com esse mesmo volume de trabalho, e gozava somente oito a 15 dias de férias por ano. Com este horário, sabendo que o meu motorista tinha direito ao devido descanso, e o trabalho fora do horário laboral tem também um custo extra para o município, eu assumia algumas das deslocações”, argumenta.
E reforça: “Foi assim enquanto foi a melhor opção para o município, quer por questões de tempo, de gestão de recursos humanos e também de dinheiro (sim, por vezes, ficava mais barato ao município). E foram seguidas as normas legais para o uso de veículos próprios em serviço público.”
A ex-presidente revela que, até ao momento, ainda não foi ouvida pelas autoridades e que apenas conhece o processo pela Comunicação Social.
As versões contraditórias
Dores Meira queixa-se de, até hoje, não ter recebido do município a documentação solicitada que lhe permita esclarecer as várias questões levantadas na Comunicação Social.
O município, porém, garante que já facultou à ex-autarca todos os documentos solicitados. “A relação da documentação facultada a órgãos de Comunicação Social, de acordo com o que foi solicitado por representante da dra. Maria das Dores Meira, foi fornecida alguns dias depois, tendo, mais tarde, a mesma representante solicitado cópias dos documentos, uma vez que, por lapso, como a própria comunicou à Câmara, não tinham sido pedidos na primeira comunicação. Estes documentos já foram entregues”, afirma a autarquia.
No entanto, Dores Meira tem versão diferente. “Não é verdade que tenha obtido os documentos que a Câmara Municipal de Setúbal facultou e que estão em posse da Comunicação Social. Solicitei ao município, no dia 8 de Agosto de 2024, por carta, os referidos documentos. Por falta de resposta, foi solicitado, por e-mail, ao que a Câmara respondeu, no dia 6 de Setembro, que tinha enviado dois documentos para os jornalistas mas não me os facultou. Mais tarde, por ter tornado público, na abertura da minha sede de candidatura, que não me tinham facultado os documentos, recebi da Câmara um e-mail com os seguintes documentos: três despachos de delegação de competências no vice-presidente da Câmara por motivos de ausência em delegação do município, e três boletins itinerários”, indica a ex-autarca. “Esses documentos, no entanto, não correspondem à informação que foi facultada aos jornalistas. Aguardo que o município me faça chegar toda a informação”, conclui.
Maria das Dores Meira presidiu à Câmara de Setúbal, eleita pela CDU, entre 2006 e 2021.
Cartão de crédito Município reembolsado pelo Clube das Mais Belas Baías do Mundo
O município de Setúbal confirma que foi ressarcido, pelo Clube das Mais Belas Baías do Mundo, das despesas efectuadas com recurso a cartão de crédito da autarquia por Dores Meira nas deslocações a Nova Iorque (de 3 a 9 de Junho de 2017) e ao Japão (de 7 a 22 de Outubro de 2019).
A Câmara explica que emitiu “a factura com as despesas da visita a Nova Iorque (1.930,67€)” e que “também facturou no mesmo documento 54,19€ das comissões bancárias”. “A associação [Clube das Mais Belas Baías do Mundo] transferiu, para uma das contas do município, a 12/01/2018, o valor mencionado (1.984,86€)”, indica. A autarquia adianta ainda que Dores Meira recebeu, previamente, 678,64€ de ajudas de custo para esta deslocação.
Quanto à viagem ao país nipónico, o município diz ter sido reembolsado “no valor de 1.401,78€”, referente a despesas pagas pela ex-autarca também com o cartão de crédito da autarquia. Em ajudas de custo, Dores Meira “recebeu [previamente] 1.353,28€”.
Contudo, a representação do município nas duas iniciativas do Clube das Mais Belas Baías do Mundo não teve “custo zero” para a autarquia, conforme disse Dores Meira durante o discurso de abertura da sua sede de campanha. A ex-autarca não contabilizou as ajudas de custo recebidas. Além disso, só na visita a terras do Sol Nascente o município diz ter suportado “o valor de 14.501,78€”, para a participação da comitiva setubalense no evento.