A história dos Bombeiros de Cacilhas começa com um ‘soco na mesa’ pela vontade de socorrer as populações
“Podemos não voltar, mas vamos”. É com esta sua ‘lei’ que os homens e mulheres da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Cacilhas socorrem as populações do concelho de Almada e, quando a isso são chamados, as de outra parte do território nacional.
Entre as cinquenta mais antigas do país, e com várias condecorações, para além de declarada pela República como de Utilidade Pública e Ordem de Beneficência, a corporação começou por se designar Serviço Voluntário de Incêndios em Cacilhas; e assim foi fundada a 15 de Janeiro de 1891.
“A história da instituição é de estabilidade, tanto a nível financeiro como da direcção e comando”, comenta o comandante Miguel Silva. Exemplo disso, acrescenta, “é eu ser o 11.º comandante de uma instituição com 129 anos”.
Foi de um grupo de homens convictos que nasceu uma corporação de bombeiros coesa numa Almada ainda vila, e Cacilhas uma beira rio apetecível para investidores nacionais e estrangeiros desenvolverem os seus negócios nas zonas do Ginjal, Margueira e Caramujo.
Estava-se em plena Revolução Industrial; mais máquinas e maior concentração de pessoas. O risco de fogos em espaço urbano era maior, mas o combate a incêndios continuava “suportado pelo serviço municipal que, embora tivesse duas bombas de incêndios, não contava com pessoal especializado no combate a incêndios”, lê-se no historial publicado pela própria instituição.
“Não existia por isso qualquer material de salvamento em edifícios, ficando o socorro de vítimas ao cuidado do mais arrojado espectador, muitos são os relatos de autênticos actos de bravura”.
Em Cacilhas, quando aconteciam grandes incêndios ganhava força a vontade de se criar um corpo de bombeiros no povoado. “Na barbearia de Guilherme Silva juntava-se a plebe, em ganas de mover montanhas, mas sem argumentos válidos para edificar tais intentos. Umas dezenas de metros abaixo, no outro lado da rua, reunia-se a burguesia na casa de pasto “O Bilhar”, onde argumentos havia em demasia, mas as ganas eram desvanecidas em amenas tacadas de bilhar”.
Na altura, as associações de bombeiros voluntários extinguiam-se em poucos anos pelo peso das despesas. Foi o que aconteceu com uma associação de bombeiros em Almada, que sem apoios municipais e reduzido corpo de voluntários, ao fim de nove anos, em Janeiro de 1891 teve de cessar actividade.
No mesmo mês, na madrugada de dia 11, um intenso incêndio começa no centro de Cacilhas. É pedida ajuda a bombeiros de Lisboa mas esta demorava, ao mesmo tempo os meios locais conseguiram circunscrever as chamas, também pela ajuda recebida de duas embarcações da Marinha de Guerra que mandaram 36 praças das suas guarnições. Só bem mais tarde chega o apoio de Lisboa. Às duas da tarde o incêndio estava extinto.
“Na manhã seguinte, na barbearia de Guilherme Silva, batem-se punhos que firmam as estacas da criação de um corpo de bombeiros em Cacilhas, formado por homens da terra”. Enquanto isso, “pela Rua Direita, acima e abaixo entre a barbearia e a casa de pasto, andava um homem”, aquele que veio a ser o “impulsionador de toda esta grande obra humanitária”, lê-se na história da instituição. Era António Feio que, aos 26 anos, congregou o povo de Cacilhas para a criação de um corpo de bombeiros local. E a 14 de Janeiro, ele próprio, assinou e enviou à Câmara de Almada uma carta a comunicar a criação do Serviço Voluntário de Incêndios de Cacilhas.
Na noite de 15 de Janeiro de 1891, um grupo de homens reúne-se na casa de Guilherme Silva, no Largo de Poço n.º 2, para fundar a que veio a ser, hoje, a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Cacilhas que teve como primeiro comandante um dos grandes impulsionadores da instituição, precisamente António Augusto Figueiredo Feio.
Hoje, o comando está com Miguel Silva, desde 16 de Janeiro de 2020, que fala de uma corporação que ambiciona levar sempre mais longe o seu socorro e a mais pessoas. Foi esse espírito que, em 1913, fez os Bombeiros de Cacilhas prestarem apoio na Costa da Caparica. Na época, o povoado piscatório começou a ser procurado por famílias para banhos e, bombeiros de Cacilhas, “caminhavam até à Costa para dar assistência”. Mais tarde foi fundado um quartel na localidade.
Hoje, a grande ambição da corporação é ter um novo quartel na cidade da Costa da Caparica. Diz Miguel Silva que já existe um investidor que, a troca de uso de um terreno dos Bombeiros de Cacilhas, “vai construir um novo quartel onde está o actual”. E tudo já está decidido, “aguardamos deferimento da Câmara de Almada para começarmos as obras”.
Entretanto, apesar da estabilidade da instituição, diz o comandante que a actual situação pandémica está a “dificultar pagar os vencimentos. Temos 65 funcionários para manter o socorro a um concelho cm 170 mil habitantes; é um socorro que não pode ser mantido só com bombeiros voluntários”.
Diz o comandante que as dificuldades que se apresentam aos Bombeiros de Cacilhas são transversais a outras corporações do país. “O poder central, através da Autoridade Nacional de Protecção Civil, disponibiliza apenas 29 milhões de euros para os 464 corpos de bombeiros em Portugal. Isto é muito pouco”, afirma.
A restante parte financeira dos bombeiros advêm da prestação de serviços, por isso Miguel Silva mostra a sua satisfação pelo apoio que a Câmara de Almada dá às três corporações do concelho, desde 1988, na garantia dos piquetes de intervenção e equipamentos. “A cada corporação entrega, anualmente, 100 mil euros, o que nos permite comprar equipamentos. E, também com a ajuda de mecenato, conseguimos ter um bom parque automóvel ajustado às necessidades do concelho, para além de bons meios operacionais”, afirma.
Fragata D. Fernando II e Glória em chamas
O primeiro grande incêndio onde actuaram os Bombeiros Voluntários de Cacilhas ocorreu a 9 de Abril de 1891, na fábrica de cortiça de Hilário Rodrigues Piló, no Caramujo. Com socorro no combate a vários fogos em unidades fabris e urbanos, como na Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, na madrugada de 17 de Agosto de 1910, onde era a única corporação, uma vez que a de Almada só foi fundada em 1913 e a da Trafaria em 1931, os Bombeiros de Cacilhas têm no registo a participação num diferente combate às chamas no dia 3 de Abril de 1963.
Nesse dia, a Fragata D. Fernando II e Glória foi envolta pelas chamas e, descreve, pela sua mão, o bombeiro Severino Coelho Durão, Chefe do Quadro de Honra: “regressava do meu trabalho em Lisboa; ao chegar ao Largo de Cacilhas, pelas 17h00, reparo que a Fragata Dom Fernando estava envolta em fumo e chamas; entrego a minha mala de ferramentas no quiosque de livros e revistas da D. Emília e corro de imediato para a estação dos barcos.
Dirigi-me ao chefe da Estação Fluvial de Cacilhas, senhor Sintra, e pedi para ligar para o quartel para dar o alarme de incêndio. Enquanto esperava a chegada do material, a Sociedade Marítima de Transportes disponibilizou logo o Ferry-Boat Setubalense, onde embarcou o pronto-socorro Alerta e a moto-bomba Dennis, navegando imediatamente para junto da Fragata.
O intenso fumo dificultou a manobra de atracar, mas assim que nos aproximámos colocámos todo o material em carga, lançando os jactos de água pelas aberturas disponíveis.
Mais tarde chegou o Ferry-Boat Palmelense com viaturas e moto-bombas da nossa Associação e dos Bombeiros de Almada; alguns rebocadores da Marinha vieram também ajudar no combate às chamas, conseguindo flanquear o foco principal.
Corremos um enorme risco para salvar a Bandeira Nacional que se encontrava hasteada, tendo ficado algo chamuscada; foi depois dobrada e guardada em cima da bomba Dennis, de onde veio a desaparecer.
Estivemos sete horas seguidas a combater o fogo e começámos o rescaldo já perto da meia-noite; o navio estava muito danificado e havia o receio que se afundasse. Estive mais de cinco horas agarrado a uma agulheta de 70 m/m; já mal sentia os braços e só comemos quando chegámos ao quartel já de madrugada”.
Depois do incêndio, a D. Fernando – último navio de guerra inteiramente à vela da Marinha Portuguesa – foi recuperada pelo Arsenal do Alfeite e pelos estaleiros Rio-Marine de Aveiro, e está hoje visitável em Cacilhas.