22 Julho 2024, Segunda-feira

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Antes do 25 de Abril um quarto da população de Setúbal vivia em barracas

Antes do 25 de Abril um quarto da população de Setúbal vivia em barracas

Antes do 25 de Abril um quarto da população de Setúbal vivia em barracas

Livro mostra os antigos bairros de lata. Com 11 mil pessoas em barracas, a cidade sadina era a mais afectada do País pela falta de habitação

 

Antes do 25 de Abril de 1974, mais de 11 mil pessoas viviam em barracas em Setúbal, o que faz da cidade sadina, em termos relativos, a mais afectada pela falta de habitação em todo o País na fase final do Estado Novo.

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Os números constam de um relatório confidencial, na altura, elaborado pelo Município de Setúbal por volta de 1970 e revelado agora no livro ‘Outro Mundo no Mesmo Lugar – A Cidade das Barracas’ que foi apresentado este domingo no Salão Nobre da Câmara de Setúbal.

De acordo com os cálculos e fotografias feitos por uma equipa da Câmara Municipal de Setúbal poucos anos antes do 25 de Abril e para uso restricto, uma vez que o regime silenciava o problema da falta de habitação, havia um total de 2254 barracas com pelo menos 11 mil moradores o que corresponde a 25 por cento da população da cidade nesse tempo.

“São inventariados 22 bairros e núcleos de barracas, tanto para o lado nascente da linha de caminho-de-ferro, como para o lado poente, na encosta da Serra da Arrábida”, escreve Jaime Pinho na nota de abertura. Este professor de História, que é um dos quatro autores do livro, acrescenta que estes núcleos, em Setúbal, “chamavam-se bairros da folha, por causa das chapas de folha metálica que usavam para tapar buracos das precárias paredes de madeira e telhados das habitações”.

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O relatório e o conjunto de fotografias inéditas que os autores encontraram no Arquivo Municipal de Setúbal “não deixam dúvidas sobre a grandiosidade do problema”, dizem.

De acordo com Ana Alcântara, historiadora local que assina o prefácio, este livro surge como um elemento importante para a salvaguarda do património social de Setúbal porque, como escreve no prefácio, revela as comunidades que habitavam a cidade nos anos 70 do século XX. “Este é um retrato de uma urbanidade desaparecida, ainda presente na memória de algumas e alguns, mas parte integrante do património colectivo”, sustenta.

Este “retrato único e elucidativo” é considerado relevante para a compreensão da história contemporânea da cidade e da sua população porque “resgata fontes fundamentais para a desocultação da densidade histórica de locais concretos e comunidades específicas, contribuindo para o estabelecimento de laços entre gentes e espaços da sua vivência quotidiana passada e actual”.

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As fotografias, que nos transportam por ruelas de terra batida, ladeadas de madeira e lata, por pátios desordenados e veredas por entre mato, buracos e cabeços, são também, no entender de Ana Alcântara um antidoto dos saudosistas que apregoam que ‘antigamente é que era bom’.

“O antigamente era pobre, duríssimo, descalço, sujo, sem condições, sem direitos e com desigualdades atrozes”, vinca.

Jaime Pinho diz que dar a conhecer essa realidade é uma das utilidades do livro. “Os nossos pais e avós moravam em barracas, algumas das quais sem casas-de-banho, luz ou esgotos”, disse a O SETUBALENSE. “Em termos proporcionais estou convencido de que Setúbal era a cidade do País com mais barracas”, acrescenta.

Os autores recordam que o relatório e as fotografias foram realizados por funcionários municipais durante o Estado Novo pelo que se trata de documentos “criados e construídos com propósitos específicos e comprometidos com o pensamento do regime”.

Um outro relatório semelhante, de 1947, já tinha identificado 23 bairros de lata, com 1321 barracas e um total de 5049 residentes. Um número que mais do que duplicou nas décadas seguintes, com o aumento demográfico impulsionado pelo desenvolvimento industrial.

 

Industria atrai migrantes do Alentejo

“Na década de 1950 e, sobretudo de 1960, entraram na cidade indústrias modernas (siderurgia, química, naval e construção de automóveis), ligadas ao capital estrangeiro. Aproveitando a disponibilidade de mão-de-obra barata, particularmente a feminina e uma nova vaga de migração de população camponesa alentejana, a economia reinventou-se depois da retração das conserveiras.”, escreve Lia Antunes, também co-autora do livro.

A vida nestas habitações precárias era tão difícil que, conclui o relatório, os homens preferiam passar boa parte das noites fora de casa. “Não admira, pois, que as tabernas centros de convívio da população masculina jovem e adulta, abundam pelas imediações. Mais limpas, mais alegres, mais confortáveis que as barracas, os homens sentem-se melhor nelas do que em suas próprias casas, onde, por vezes, só vão para ficar durante a noite”, lê-se num excerto do documento de 1970.

A autora Lia Antunes sublinha que certos grupos sociais, designadamente as mulheres e as crianças, não tinham essa escapatória e estavam confinadas à miséria das barracas como espaço quotidiano.

E não se pense que os habitantes das barracas eram apenas os operários das fábricas ou desempregados. Muitos moradores eram funcionários públicos, como trabalhadores da câmara municipal, do porto de Setúbal ou empregados das melhores empresas da região, como a Secil e a Sapec. “Estamos a falar de pessoas com profissões, com empregos, e que não tinham rendimentos para aceder a habitação condigna”, destaca Alberto Lopes. Pelos cálculos deste autor do livro, professor de História, mesmo os moradores empregados estavam muito longe de conseguirem comprar uma casa.

“Na década de 70, o rendimento mensal para uma vida digna teria de ser de 40 contos e a média encontrada neste inquérito foi de 13 contos. Há aqui uma grande disparidade.”, disse a O SETUBALENSE.

O inquérito realizado em 1970 identifica um total de 256 “chefes de família” sendo que a maioria (106) eram trabalhadores do sector terciário, 62 trabalhavam no mar ou no campo, 46 eram operários, três estavam aposentados e apenas 38 eram desempregados ou não tinham emprego definido.

Dos 22 bairros de folha que o relatório de 1970 identifica, os maiores são o do Casal das Figueiras, com 550 barracas, da Monarquina, com 248, do Alto do Pina, com 236, o Maltalhado (208), Vale das Cerejeiras (193), e Montureiras (106). Todos os restantes tinham menos de uma centena de barracas, sendo que a média rondaria as 50 habitações.

“Quer dizer, 24,75% da população da cidade vive em barracas miseráveis, desprovidas das mais elementares condições de higiene e conforto”, conclui o relatório que assume, igualmente, que os mais de 11 mil moradores são, na “esmagadora maioria” pessoas trabalhadoras. “Quem é esta gente que vive em tão deploráveis condições de habitação?”, pergunta o relator, que dá também a resposta: “Serão ociosos, inválidos, mendigos, ineptos? Reduzida parte, justo é confessá-lo, sim. Mas a maioria, a esmagadora maioria, não. São trabalhadores e suas famílias; operários e operárias da indústria.”

Este inventário das barracas é também, destaca a outra autora do livro, a antropóloga Vanessa Iglésias Amorim, uma “cartografia da pobreza” de que ainda se encontram vestígios no “traçado irregular” de muitas zonas da cidade. “No mapa de Setúbal de hoje vemos bolhas onde o planeamento urbanístico e ordenamento do território parece não ter existido. Muitas ruas que hoje têm perfilhamento e estão asfaltadas, foram caminhos de terra desenhados pelos pés destas populações nas suas deslocações”, salienta.

O livro, de 116 páginas e design de Jorge Silva, com muitas fotos, algumas das quais com legendas de quem viveu nos bairros de folha, já foi apresentado em Setúbal, e, vai ser apresentado também em Lisboa, no dia 25, às 19 horas, na Casa do Comum do Bairro Alto, com entrada livre.

 

Das barracas aos bairros SAAL

Alguns dos bairros de barracas que existiam em Setúbal no período do Estado Novo foram transformados, como muitos outros um pouco por todo o País, em bairros SAAL, bairros criados ao abrigo do programa Serviço Ambulatório de Apoio Local.

Este plano, criado em 1975, após o 25 de Abril, trouxe alguns dos arquitectos mais conhecidos ao trabalho no terreno. Siza Vieira no Porto, Gonçalo Birne desenhou o Bairro do Casal das Figueiras, em Setúbal e outros nomes envolveram-se em muitas dezenas de projectos. Ao todo foram mais de uma centena os bairros SAAL um pouco por todo o País.

Em Setúbal foram edificados seis bairros destes, o Casal das Figueiras (420 fogos), Monarquina (230) Castelo Velho, hoje denominado ‘O Grito do Povo’ (78), Bairro dos Pinheirinhos (180), Bairro da Liberdade (100) e Terroa de Baixo (41).

Muitos bairros SAAL ficaram a meio porque, entretanto, o plano foi abandonado pelo Estado central e muitos projectos tiveram de ser concluídos pelos municípios.

No distrito de Setúbal nasceram bairros destes, concluídos já nas décadas de 80, em Alcácer do Sal, Bairro 25 de Abril e Bairro da Quintinha da Liberdade; em Grândola, Vale Pereiro e Bairro Unidos Venceremos; e no Seixal, Bairro 25 de Abril e Bairro 1.º de Maio.

O levantamento, história e caracterização destes bairros foi feito por Jaime Pinho no livro ‘Fartas de viver na lama’, com fotografias de Fernanda Gonçalves e Leonor Taurino, publicado em 2002 pelas Edições Colibri.

 

 

Vice-presidente Carla Guerreiro, com os quatro autores do livro junto dos populares autores das legendas do livro e de Daniel Pires, do Centro de Estudos Bocageanos

Carla Guerreiro: “A câmara está a contribuir para acabar com falta de habitação”

Na apresentação do livro, este domingo, a vice-presidente da Câmara de Setúbal destacou o investimento em curso, no concelho, na área da habitação, que ultrapassa os 200 milhões de euros, co-financiados pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Vão ser construídas, pelo município, 500 novas casa a que se somam 900 fogos criados em parceria com o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana e 80 da responsabilidade da associação ACM. A generalidade destes novos fogos destina-se a renda apoiada.

“A Câmara Municipal de Setúbal está a dar um contributo para acabar com o problema da falta de habitação”, disse Carla Guerreiro. A autarca felicitou os autores e o Centro de Estudos Bocageanos pela edição do livro.

Por parte do Centro de Estudos Bocageanos, Daniel Pires recordou que, com esta ultima edição, o centro já publicou 50 livros e que, em 25 anos de actividade, conta com importantes iniciativas como a divulgação da obra do poeta nas escolas, no estrangeiro, e a publicação da obra completa, em quatro volumes, com o apoio da Direcção-Geral das Artes (DGArtes).

 

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