“As palavras entontecem quando dispersas levantam rumos vários”, José Afonso, ‘As palavras’ , Textos e Canções
Julho, dia 20. O ano era o de 1939. Algures em Lisboa, nascia uma menina a quem foi dado o nome de Maria Luísa, Bliebernicht pela mãe, Ducla Soares do lado do pai.
Mais tarde, do companheiro de sempre, Mário, havia de acrescentar Sottomayor Cardia. Mas os livros de literatura e milhares de leitores reconhecem-na apenas como Luísa Ducla Soares.
Em 2020 comemorou 50 anos de vida literária, iniciada em 1970 com Contrato, livro de poemas que foi como um contrato que se mantém válido até hoje, estabelecido com os seus leitores, maioritariamente crianças e jovens, para quem já publicou 181 títulos, de que vários ultrapassaram a dezena de reedições.
Humor e nonsence ocupam lugar cimeiro na sua obra, lado a lado com marcas da tradição oral, muitas vezes transgressoras, emparelhando com crítica e denúncia social, procurando que os leitores se abram para um mundo mais justo, onde as diferenças sejam inspiradoras e criativas, em que seres humanos e natureza se respeitem mutuamente, construindo entendimentos e destruindo barreiras, deixando que o sonho e a fantasia também ajudem a crescer.
Quem começou por lhe publicar os textos para crianças foi José Saramago, então responsável editorial na Estúdios Cor.
O seu primeiro livro infantil, A História da Papoila (1972), deu logo nas vistas e o júri do Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, galardão do regime atribuído então à literatura para a infância e juventude, decidiu premiá-lo.
Contudo, a escritora, em coerência com os seus princípios ético-políticos e sociais, recusou-o. Provavelmente a maioria dos leitores destas linhas desconhece que Luísa Ducla Soares tem uma ligação forte a Setúbal, já que sua mãe, Marie Louise, nasceu na cidade do Sado.
E isso não aconteceu por acaso. A história da sua família materna parece uma das suas narrativas. Vamos conhecê-la através das suas próprias palavras.
“A minha mãe nasceu em Setúbal, na Avenida Luísa Todi, numa casa de azulejos. O meu avô, Ernst Richard von Ducker Bliebernicht, teve aí, durante muitos anos uma fábrica de conservas de peixe, A Minhota, ou Empresa Ernest Bliebernicht, Factory A Minhota”.*
“Tinha mais de uma dúzia de diferentes marcas de conservas, todas com nomes estrangeiros, já que apenas exportava. Ficava em frente ao rio, com uma saibreira por detrás. Os barcos paravam e descarregavam mesmo em frente. Fui lá muitas vezes em criança e até tive o gosto de meter sardinhas nas latas”.
“O meu avô nasceu na Estónia. Tinha nacionalidade russa, pois a Estónia tinha sido integrada na Rússia, mas pertencia a uma colónia de origem alemã, descendente, segundo dizem, dos cavaleiros teutónicos. Falava alemão com a família, russo na escola, e a língua autóctone com as pessoas do povo”.
“Era hábito na família dele os filhos irem todos tirar cursos superiores para o estrangeiro: um irmão tirou o curso de Engenheiro cervejeiro, outro de Direito, ele de Comércio. Foi fazer um estágio em França numa firma que negociava com conservas portuguesas”.
“Assim, veio em trabalho a Setúbal e encantou-se com a cidade e com a ideia de comprar ele uma fábrica e trabalhar na indústria conserveira. Aí conheceu a minha avó, Louise Mathilde Blanc, depois Bliebernicht. Era filha de um francês, de Lyon, que trabalhava numa livraria do Porto e morreu cedo”.
“A família veio para Setúbal onde conhecia belgas e franceses e aí a minha bisavó fez uma hospedaria onde o meu avô se alojou. Como ele falava bem francês naturalmente ia falando com a filha da hospedeira e, assim, enamoraram-se e casaram. Foram viver para a Avenida Luísa Todi onde nasceram os filhos mais velhos”.
“Não sei ao certo quando o meu avô veio para Setúbal, mas a minha mãe, a mais velha de cinco filhos, nasceu aí, em 1911, tinha ele 29 anos. A sua estadia na cidade do Sado foi interrompida por causa da Guerra de 14-18, alistando-se o meu avô no exército russo”.
“Como falava muitas línguas fez a guerra trabalhando num hospital francês como intérprete. Terminado o conflito bélico, voltou para Portugal e ter-se-á instalado em Lisboa, onde acabou por montar escritório e comprar uma moradia, mantendo a fábrica”.
“Ganhou muito dinheiro, mas, a certa altura, as sardinhas deixaram de aparecer em Setúbal. A vida dele começou a andar para trás e viu-se obrigado a vender a fábrica. No dia da venda teve um enfarte e não conseguiu assinar, morrendo pouco depois. Estava-se em 1965 e lembro-me bem desse acontecimento”.
“A minha infância está povoada de curiosidades ligadas à indústria conserveira. Minha avó tinha receitas secretas que mandava preparar na fábrica para a família e mais tarde contou-me esses segredos”.
“Quando os barcos chegavam, um empregado tocava uma espécie de cornetim para as empregadas irem a correr trabalhar, pois o peixe não ia para frigoríficos, tinha de ser preparado ao chegar do mar. Eu era a neta mais velha e a preferida do avô. Era também afilhada da avó Mathilde”.
“Lembro-me de passeios a laranjais para comprar laranjas maravilhosas e de salmonetes que meu avô encomendava sempre nos restaurantes. Nunca mais provei salmonetes assim. Setúbal era para mim um paraíso.”
Luísa Ducla Soares (depoimento feito a Fátima Ribeiro de Medeiros em Março de 2021)
Autor: Fátima Ribeiro de Medeiros – Investigadora IELT, NOVA-FCSH
*Segundo Madureira Lopes e Alberto Pereira, A Indústria da Conservas de Peixe em Setúbal, Setúbal, ed. autor, 2015, pp. 302-303, funcionou na Rua da Saúde e Estrada da Graça, 282, entre 1923 e 1965.