Quase dois meses após ter tido início a guerra na Europa, nas minhas deambulações pela imprensa digital escrita, encontrei uma reflexão de Dimitri Medvedev, antigo Presidente da Rússia que alternou com Vladimir Putin, enquanto este tinha limites de mandatos e ainda não tinha alterado a lei que lhe permite manter-se no poder até 2036.
A sua reflexão dizia respeito a um anseio seu e de Putin de uma federação unida, denominada Eurásia e que iria desde Lisboa, a Sudoeste da Europa, junto ao Oceano Atlântico, até Vladivostok, no extremo Este da Ásia, junto ao Oceano Pacífico.
Assim que me deparei com esta opinião, lembrei-me imediatamente do livro “1984” do escritor, critico literário e activista político inglês George Orwell. É um dos melhores livros que tive o privilégio de ler, reler, tornar a ler, vezes sem conta. É um daqueles a que recorro regularmente.
Este livro, publicado pela primeira vez em 1949, alterou para sempre a minha percepção pessoal e política, permanecendo solidamente ancorado no meu imaginário e seguramente no imaginário colectivo, como um dos grandes clássicos da literatura contemporânea.
A narrativa centra-se numa Londres dominada pelo totalitarismo comunista, onde as liberdades fundamentais são abolidas e a memória inexistente.
No livro “1984”, o Grande Irmão (do inglês original, Big Brother) controla tudo; a política, a profissão, o lazer, os afectos, o sexo, o pensamento, a memória, recorrendo ao medo constante, ao pânico generalizado, acompanhados sempre por um telecrã que controla até qualquer esgar ou ansiedade estampada no rosto.
Existe uma adaptação cinematográfica excelente, num filme de Michael Radford, curiosamente lançado nesse mesmo ano de 1984, com sir John Hurt no papel de Winston Smith e o lendário Richard Burton, interpretando o Polícia do Pensamento.
George Orwell introduz a Novilíngua, uma versão cada vez mais simplista da língua (faz lembrar um pouco o actual português, após a introdução do Acordo Ortográfico) que a empobrece de forma eficaz, deliberada e intencional, impedindo a formulação de um pensamento complexo, numa sociedade totalitária que nos condiciona o pensamento. Quanto mais pobre a linguagem, mais facilmente o pensamento desaparece, tudo ao serviço de um conformismo, onde impera a ortodoxia; não pensar, não recordar, não ter necessidade de nenhuma delas.
Recordar é perigoso; pensar ainda o é mais. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força, são as mensagens constantemente transmitidas.
No livro de Orwell, encontramos três estados federados, superpotências continentais, a Eurásia, a Lestásia e a Oceânia, que emergem após uma hipotética guerra nuclear, ocorrida nos anos cinquenta. Estas três superpotências estão em guerra permanente entre si, alternando as alianças e os inimigos.
Assim sendo, a narrativa histórica altera-se conforme as conveniências do momento e o protagonista Winston Smith, trabalha precisamente nas alterações constantes de documentação, para que não exista qualquer memória do passado, mantendo-se num eterno presente. Claramente uma forma explícita de revisionismo histórico, uma vez que, quem controla o passado, controla o futuro e as mentes; um entorpecimento deliberado da consciência.
Até os encontros amorosos entre Smith e Júlia eram monitorizados pela Polícia do Pensamento, uma entidade tenebrosa que nos faz lembrar de imediato a PIDE, a Stasi, a KGB, ou a Gestapo.
Medvedev e Putin que terão lido o referido livro, seguramente que se revêm quimericamente a comandar este mundo uniformizado, autocrático e conformista, um pouco como a Rússia de hoje, o que explica muito sobre os motivos desta guerra e a apetência por novos territórios.
A catorze de Maio de 2015, Mário Soares escreveu na revista Visão, um artigo de fundo intitulado “Putin, um homem perigoso”, que recomendo vivamente.