Um quase irmão

Um quase irmão

Um quase irmão

18 Dezembro 2019, Quarta-feira
Juvenal José Cordeiro Danado - Professor
Juvenal José Cordeiro Danado – Professor

Os amigos de infância ocupam um cantinho especial no nosso coração. Parceiros privilegiados no processo de socialização, cúmplices de descobertas e aprendizagens, paródias e diabruras, confidentes prediletos, são como irmãos de criação.

O Fernando Pé Frito (Fernando Manuel dos Santos Martins) era aquele que me habituei, desde menino, a considerar o meu maior amigo. Camarada de uma vida, tinha-o como um quase irmão. Juntos, andámos por Aires e calcorreámos os caminhos, os campos e os cabeços à volta da aldeia, nas brincadeiras próprias dos rapazes da nossa geração. Já adolescentes, estivemos em bailes, falámos de miúdas, confidenciámos planos para a vida. Divertimo-nos à grande. Quando constituímos família, a amizade alargou-se às companheiras e aos filhos. Amigos de sempre, e para sempre, nunca entre nós houve um indício, sequer, de desentendimento.

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De trato fácil, afetuoso, o Fernando era uma joia de pessoa, uma alma generosa, dado a ajudar os outros e amigo com quem se podia contar. Pelo bem, tinha-se tudo dele. Destemido, quem lhe fosse por mal, tinha luta.

Foi mecânico de automóveis, relojoeiro, empregado de escritório, manobrador de máquinas, eletricista, em tudo competente. Era grande caçador. Engenhoso, hábil e desenrascado, o que imaginava e a que metia as mãos, saía-lhe bem feito. Ainda rapazinho, fazia ratoeiras e redes para armar aos pássaros. Não havia melhor a jogar à bola, ao bute e ao pião, a subir às árvores e a descobrir ninhos, na pontaria à pedrada, com a fisga ou a espingarda de pressão, a correr de bicicleta, a nadar nos tanques da Quinta da Glória, em todas as brincadeiras, em tudo a que se dispusesse. Bem-parecido, garboso, desinibido e dançarino, tinha sucesso nos bailaricos. Poderia ter deixado nome no futebol, talento não lhe faltava; faltou-lhe a motivação: que o digam os dirigentes do Palmelense que chegaram a ir a Aires para arrancá-lo à cama, quase à hora dos jogos. Um campeão, o meu amigo Fernando. Uma personalidade de Aires.

Foi à guerra e veio de lá enfermo. Uns dias após regressar da Guiné, deu entrada no hospital de Setúbal, mal do fígado, para longo internamento. O achaque acompanhá-lo-ia pela vida e seria motivo de vários internamentos. Psicologicamente, chegou perturbado. A nação, reconhecida, concedeu-lhe o «Complemento Especial de Pensão», a ucharia de 150 euros por ano – coroa de glória do ministério de Paulo Portas –, que é quanto devem valer os sacrifícios e as penas de um soldado que «serviu a Pátria em condições especiais de dificuldade ou perigo», e não digas que vais daqui. A vida, que já lhe dera uma infância amarga de menino pobre e de pouco mimo, reservou-lhe um final amargurado pela doença (a sua e a da companheira).

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A velhice tem custos. Dolorosos. Além do resto, já perdemos muitos dos que amávamos e vemos reduzir-se cada vez mais o número dos velhos amigos. Cada nova ausência é uma tragédia que nos leva a refletir sobre o sentido da vida e a questionar a valia das vidas longas – bênçãos, sim, mas também expiações. A partida do Fernando deixou-me em meio deste problema existencial.

Há dias, fui a Aires e sentei-me no Largo da Fonte, onde brincámos tanto. Fiquei ali, encantado, a assistir às fintas da tua canhota descalça e aos golos que marcavas; aos nossos jogos de bute, de pião e de virinhas com os bonecos da bola; ao teu mergulho na pia onde os animais bebiam, a desafiares a malta para o banho rápido e a escapadela à ira e à muleta do Ti Manel Coxo; às nossas corridas à bica, a lavar o cacho de uvas que pedíamos na adega do senhor Noé. E ouvi as tuas falas e vi o teu sorriso.

Como sinto a tua falta, meu querido amigo, meu quase irmão.

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