Há dias, por casualidade, dei por mim a revisitar o álbum de Zeca Afonso “Contos velhos, novos rumos” de 1969. É sempre positivo revisitar o passado (e a poesia e a boa música…) e ver a forma como se interligavam conceitos como a democracia, a liberdade e a igualdade, o modo como estes eram traduzidos em arte. A sociedade, sobretudo a ocidental/europeia, tende a entender estas noções como algo garantido e inalienável, de algum modo, como dado adquirido. É por isso que é útil, numa república como a nossa, que completou ontem a bonita idade de cento e onze anos, pensarmos como se articulam hoje estes princípios no espaço público, institucional e da decisão política e naquela que é a sua praxis, de facto.
Ninguém contesta que vivemos em democracia em Portugal. Sobretudo se nos conseguirmos abstrair das histórias de vida tremendas, oriundas de outras partes do mundo, de privação de direitos e de liberdades fundamentais, como o testemunho de vida de Zarifa Ghafari, a ativista afegã, nos ilustra. Mas isso não quer dizer que possamos descurar o rumo da nossa república ou a qualidade da sua democracia.
Por exemplo, e ainda a propósito de Zarifa Gafhari, quão próxima está a mulher portuguesa do centro da decisão política? Como é claro, mais próxima do que a afegã. Mas isso não impede que, por exemplo, nestas últimas eleições autárquicas, tenha havido menos mulheres presidentes de municípios, apesar de haver certamente mais mulheres vereadoras, apenas porque a lei – agora – assim o exige. Com otimismo, acredito que esse aumento na vereação se deva também a medidas que foram tomadas, de implementação de um paradigma de conciliação e de equilíbrio entre a vida profissional, pessoal e familiar, harmonizado com a escolha pessoal.
Um dos desafios que se colocam ainda à nossa república é precisamente o da concretização plena de um dos seus princípios soberanos – a dignidade da pessoa humana e o empenho na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Com todas as valências que isso implica (saúde, justiça, educação, luta contra a corrupção, entre tantas outras) e das quais os direitos da mulher são só um exemplo. O rumo da solidariedade é o único que permite à república credibilizar-se a si mesma.
Perpetuar a ética republicana passa também por um diálogo adequado com a nossa história e o nosso passado, sem polémicas e sem extremismos. Já mais que uma vez afirmei que não somos donos da História, nem seus juízes. Quanto muito, poderemos ser seus alunos. Contar e ensinar (já agora, traduzir em arte) a história da república portuguesa e da sua democracia, é tão importante como reproduzir a nossa epopeia marítima. No mundo em que vivemos, em que as tentações radicais, xenófobas e individualistas cada vez mais abundam, essa pedagogia, mais do que útil, é necessária e condição de sobrevivência para a democracia. Viva a República!