Em período natalício, recordei-me de uma estória que gostaria de partilhar com os vitorianos, nestas alturas conturbadas.
Em 1968, no sorteio realizado para a Taça UEFA, o Vitória Futebol Clube coube-lhe defrontar a Fiorentina, de Itália.
A Direcção do Vitória, presidida por Fernando Pedrosa, convidou meu Pai para o jantar de confraternização entre as duas comitivas, realizado no restaurante da pousada do Castelo de S. Filipe.
Eu também fui. Tinha oito anos. Era o único garoto presente no jantar.
Fiquei na mesa sentado com o saudoso Francisco Nascimento, um dos mais prestigiados e carismáticos dirigentes vitorianos. Foi dos poucos adultos a interagir e a dar atenção a um miúdo.
De repente, eis que chega a RTP, o único canal televisivo existente nessa altura. O jornalista queria entrevistar o treinador italiano.
Como tudo isto se passou perto da nossa mesa, meu Pai levantou-se e prontificou-se para facilitar a compreensão mútua.
Quando questionado sobre a eliminatória, o treinador italiano não esteve com meias medidas e exclamou: “Li mangeremo vivi !!!”, o que se traduz automaticamente por “iremos comê-los vivos !!!”.
Meu Pai teve um momento de surpresa e hesitação, mas lá avançou resoluto, traduzindo que o treinador estava optimista e que pensava superar a eliminatória com facilidade.
Com oito anos, eu tinha um entendimento literal daquilo que tinha sido dito. Logo, o treinador tinha dito que iria comer-nos vivos e não que estava optimista. Todavia, como me ensinaram a não me imiscuir em conversas de adultos, permaneci calado.
Mas a ferver; como vitoriano, estava indignado; com a tradução do Pai, entendia estar incorrecta.
Quando o jornalista se afastou, meu Pai aproximou-se do treinador italiano e alertou-o para que tivesse muito cuidado, porque o Vitória era “una gran bella e molto forte squadra” e para estar “molto attento al pericolo”.
O treinador italiano não ligou nenhuma ao alerta do Pai.
Quando o jantar terminou e fomos os dois para o carro, eu questionei-o imediatamente sobre o conteúdo da tradução.
Meu Pai deu-me uma lição de pedagogia de vida que não mais haveria de esquecer.
Primeiro, afirmou que teria sido deselegante para com os dirigentes do Vitória, traduzir aquela afirmação literalmente. Podemos dizer o mesmo, de uma forma mais polida e delicada.
Segundo, e de acordo com meu Pai, a Fiorentina tinha “acabado de perder a eliminatória”. “O treinador não fez o trabalho de casa, não faz ideia onde se está a meter e quem vai defrontar. La mancanza di umiltà e l’arroganza sono cose terribili”.
Como adepto, logo fiquei mais animado, com a expectativa da eliminatória.
E assim, desde o primeiro ao derradeiro minuto, o Vitória encostou a Fiorentina “às cordas”, não lhes dando tempo para respirarem. Os jogadores italianos estavam completamente desorientados.
O treinador italiano, o tal dos “li mangeremo vivi”, gritava, vociferava, incentivava. Debalde.
O treinador era Fernando Vaz. Alinharam pelo Vitória, Vital, Alfredo, Herculano, Carlos Cardoso, Carriço, José Maria, Vagner, Figueiredo, Guerreiro, Arcanjo, Jacinto João e Petita.
Resultado final: 3-0. Marcaram José Maria (o avô da minha aluna Beatriz), dois golos e Arcanjo, um golo. Outros tantos ficaram por marcar.
Quando o desafio terminou, meu Pai olhou para mim e disse “Hai visto? Avevo ragione, io”.
Tinha razão, sim senhor.
No desafio em Florença, o Vitória perdeu por 1-2, passando a eliminatória.
Hoje estamos aqui a evocar um dos pontos mais altos da história do Vitória Futebol Clube.
E uma lição de vida.
Boas Festas para todos.
VIVA O VITÓRIA