Havia uma anedota que se contava entre Março e Abril de 1974, e que era a seguinte:
“Qual era a cidade mais virgem do mundo? Era Lisboa, porque não tinha deixado entrar os tipos das Caldas”.
Eu, que na altura tinha 13 anos, embora já entendesse o sentido da anedota, lembro-me perfeitamente de ter perguntado: “mas quais tipos das Caldas?”.
Foi a tentativa falhada, a 16 de Março de 1974, do regimento das Caldas da Rainha de entrar em Lisboa, que o regime do Estado Novo minimizou, embora fosse mencionada ao de leve por Marcello Caetano, no seu programa de televisão habitual “conversas em família”, e cuja tentativa foi precursora do 25 de Abril.
O 25 de Abril de 1974 foi um dia nublado, sem sol, embora não tivesse chovido durante todo o dia.
Lá em casa soubemos da revolução, de manhã bem cedo, quando o gerente de um conhecido banco, telefonou à minha mãe para que pedir que não levantasse o dinheiro que tínhamos lá depositado. Só então tivemos a noção que algo se estava a passar.
Meu pai, oficial da marinha, encontrava-se, nessa altura em navegação, no Golfo Pérsico.
Fui para o Liceu (andava no 4ºano, actual 8ºano), e verifiquei que metade da turma não tinha ido, tendo o governo posteriormente considerado as faltas justificadas.
Nas aulas de Geografia e de Matemática, lembro-me de termos falado da questão colonial, de António de Spínola e do seu livro “Portugal e o futuro”, de Mário Soares, Costa Gomes, Humberto Delgado, tudo nomes desconhecidos para mim, na altura.
Depois fui para casa e pusemo-nos a ouvir o rádio (na altura a televisão só emitia ao fim da tarde, só com um canal, a RTP).
O MFA afirmava que as pessoas se deviam manter em casa a fim de evitar derramamento de sangue, e que um dos grandes objectivos da revolução era tornar Portugal uma democracia, acabar com a guerra em África e tornar as colónias independentes.
À noite, vimos tudo pela televisão: os militares em Lisboa, a coragem e determinação do Capitão Salgueiro Maia, a alegria do povo que, entretanto, tinha saído à rua vitoriando a revolução, o comunicado televisivo da Junta de Salvação Nacional, lido por António de Spínola, ladeado por Costa Gomes, Galvão de Melo, Pinheiro de Azevedo, e outros.
Passados todos estes anos, um dos aspectos que me impressionou, e impressiona ainda, foi a facilidade e a rapidez com que o regime do Estado Novo caiu. Como se estivesse a cair de podre.
E estava, de facto
Se porventura se puder associar uma pessoa ao 25 de Abril de 1974, essa pessoa é, para mim, o Capitão Fernando Salgueiro Maia.
Salgueiro Maia representa o lado romântico do 25 de Abril, tendo sido uma das figuras mais determinantes e historicamente representativas desse dia.
A sua coragem física e força psicológica foram decisivas para o sucesso de toda a operação.
O seu percurso de vida a seguir ao 25 de Abril foi de uma sobriedade, seriedade e ausência de protagonismo que me apraz registar. Esteve presente no 25 de Abril, por convicção pessoal.
Em 1983, recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, e, a título póstumo, o grau de Grande-Oficial da Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito em 1992 e em 2007 a Medalha de Ouro de Santarém.
Recusou, ao longo dos anos, ser membro do Conselho da Revolução, adido militar numa embaixada à sua escolha, governador civil do Distrito de Santarém e pertencer à casa Militar da Presidência da República.
Foi promovido a major em 1981 e, posteriormente, a Tenente-coronel.
Em 1989, foi-lhe diagnosticada uma doença cancerosa, falecendo a 3 de Abril de 1992, com apenas 47 anos.
Foi agraciado a título póstumo pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, a 25 de abril de 2016 (Dia da Liberdade), tendo a condecoração sido entregue à viúva a 30 de junho de 2016, véspera do dia em que completaria 72 anos de vida.
E daí que Salgueiro Maia continuará sempre a representar, para mim, o 25 de Abril no seu estado mais nobre, puro e desinteressado.