No passado mês de Agosto faleceu Mikhail Gorbachev, uma das figuras mundiais mais conhecidas, prestigiadas e carismáticas dos séculos XX e XXI.
Acompanhei sempre com muito interesse a sua vida, desde a actividade governativa no governo da União Soviética, até à sua retirada das lides políticas.
Há alguns anos atrás, comprei uma das suas melhores e mais exaustivas biografias, escrita pelo escritor norte-americano William Taubman, onde a figura de Gorbachev nos é apresentada de forma extremamente rigorosa, desde a sua infância, os tempos de universidade, o namoro e casamento com Raissa, a sua ascensão política meteórica, até atingir o lugar do todo-poderoso Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, a tentativa de golpe de Estado do qual a sua mulher nunca recuperou, nomeadamente a sua saúde, bem como a perda de controlo da situação e do seu posterior afastamento voluntário.
É um livro cuja leitura recomendo vivamente, baseado em entrevistas com o próprio Gorbachev, documentos dos arquivos russos, entrevistas com os assessores do Kremlin, os seus adversários e líderes estrangeiros, onde nos surge o retrato intensamente pessoal de uma das figuras incontornáveis do nosso tempo.
Após a leitura deste excelente livro, a pergunta surge-me de imediato; como é que as sucessivas lideranças soviéticas protagonizadas por Leonid Brejnev, Yuri Andropov, o todo-poderoso chefe da KGB (de quem Gorbachov era amigo íntimo, gozando férias em conjunto), Konstantin Chernenko e todo o aparelho repressivo comunista, com os famosos ficheiros onde não escapava nada, não se aperceberam do seu passado, bem como do carácter renovador e revolucionário deste jovem secretário-geral com apenas 54 anos?
E, no entanto, se recuarmos à infância de Mikhail Gorbachev, muitos indícios daquilo que seria a sua personalidade e, consequentemente, o seu modus operandi futuro, estão lá.
Quer o avô paterno, Andrei Gorbachev, quer o avô materno, Pantelei Gopkalo foram presos, na sequência da Grande Purga promovida por Estaline. As “quotas” estabelecidas por Moscovo determinavam um número pré-estabelecido de detidos que seriam posteriormente enviados para os Gulags ou simplesmente assassinados com um tiro na nuca, nas caves tenebrosas da NKVD, antecessora do KGB.
“Lembro-me” recorda Gorbachev ”depois das detenções, os vizinhos começaram a evitar a nossa casa, como se estivesse infectada; só à noite, e às escondidas, alguém mais próximo nos visitava por breves momentos. Até as crianças da vizinhança me evitavam. Isto espantava-me e acompanhou-me durante toda a vida”.
O avô Andrei foi preso em 1934, ficando a avó Stepanida a braços com dois filhos mais pequenos, pelo que o pai de Gorbachev, Serguei, que era o irmão mais velho, teve de cuidar de todos.
Quanto ao avô Pantelei, ucraniano de nascimento, era um fervoroso apoiante da revolução comunista, o que não evitou que tivesse sido preso. Condenado à morte, sobreviveu quando o procurador regional reduziu a acusação, do crime capital de liderar uma “organização contra-revolucionária trotskquista de direita secreta”, para o menos grave ”mau desempenho de cargo”.
Libertado em 1938, regressaria a casa. Nesse mesmo dia em que chegou, os familiares mais chegados sentaram-se à volta da mesa tosca da cabana onde viviam, enquanto o avô Pantelei, a chorar, narrava as torturas a que tinha sido submetido. Partiram-lhe ambos os braços, e espancaram-no repetidamente com brutalidade. Embrulharam-no numa pele de ovelha molhada e colocaram-no em cima de um fogão quente.
Mikhail Gorbachev tinha sete anos, mas as torturas a que o avô Pantelei foi submetido, ficaram gravadas de forma indelével na sua mente, determinando uma aversão patológica à violência que o iria acompanhar ao longo da sua vida.
Gorbachev foi um visionário que conseguiu eliminar o totalitarismo comunista não só na União Soviética, mas também em toda a Europa de Leste, trazendo a liberdade de expressão, de reunião e de consciência num país que nunca tinha tido nada disso; ao introduzir eleições livres, estabeleceu os alicerces da Democracia que viriam a ser progressivamente desbaratados com Vladimir Putin.
A guerra na Ucrânia foi para Gorbachev um duro golpe, tendo-o afectado emocional e psicologicamente.
Foi sempre um homem inteligente, de uma grande simplicidade e humanismo.
Prémio Nobel da Paz em 1990.