“O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar”. – Ítalo Calvino
Neste período estival, existem sempre motivos acrescidos para boas leituras.
Um livro que recomendo vivamente é intitulado “As Cidades Invisíveis” do escritor italiano Ítalo Calvino.
O romance foi publicado em Itália, em 1972, tendo sido traduzido e posteriormente difundido praticamente em todo o mundo; são conhecidas traduções portuguesas, inglesas, francesas, espanholas, gregas, persas, russas, alemãs, etc.
Marco Polo, o explorador veneziano que no século XIII atingiu o extremo oriente, atravessando um mundo totalmente desconhecido das terras da Ásia, encontra-se diversas vezes defronte do imperador mongol Kublai Khan, descrevendo-lhe as cidades existentes no seu reino.
A narrativa centra-se, portanto, nas histórias ficcionadas que Marco Polo contava a Kublai Khan.
Embora não se possa considerar “As Cidades Invisíveis” um livro de ficção científica, à medida que os capítulos se sucedem, não podemos deixar de nos sentir num mundo extraterrestre, onde a própria noção de Espaço e de Tempo adquirem uma dimensão própria, pela riqueza e diversidade associadas às descrições das cidades.
O imperador solicita a Marco Polo que este lhe conte, através da sua longa jornada, todos os pormenores, e em particular, pretende que lhe sejam descritas as cidades que visitou.
Na sequência da sua narrativa, Marco Polo não se limita somente a uma descrição física das cidades, todas com nomes de mulheres; através da sua construção mental, vai sucessivamente testando os limites da própria imaginação, através de um conto detalhado, baseado nas sensações e emoções que lhe suscitam, com as cores, perfumes, sabores e rumores associados.
É um livro que se pode começar a meio, no fim, deste para o princípio e vice-versa, sem que se perca o interesse, ou sem que a narrativa perca sequencialidade e coerência, a partir de uma pretensa e aparente desorganização, em novelo, a partir de uma narrativa quase de contos ou fábulas infantis, mas que Calvino compõe e interliga de uma forma sublime.
Tudo isto contribui para que o romance não tenha um fim clássico propriamente dito.
Parece mesmo que Calvino faça de propósito e se divirta com os seus leitores; e nós avidamente nos divertimos. E queremos mais.
As cidades e o seu caos, geraram em Ítalo Calvino, uma visão crítica, de uma certa ironia e distanciamento, relativamente à desordem colectiva de pessoas, espaços urbanos e problemas sociais associados. Marco Polo procura dar ordem a todas estas cidades, com a sua fantasia.
E a fantasia é o cerne da questão. A capacidade de irmos mais além daquilo que os nossos olhos percepcionam
As cidades de Calvino não são cidades reais, mas são cidades que Marco Polo imagina a partir daquelas que lhe vão concretamente surgindo.
Mas nem por isso lhes retiram a magia.
Uma viagem pela cidade, tendo como transporte urbano a memória ou a fantasia, é tão válido – se não for mais – como uma viagem real.
Vale a pena ler. E reler.
Boas Férias