“Agora já não posso perguntar” é uma frase que comporta diversos olhares: a dimensão do tempo entre um presente e o passado; uma certa nostalgia ou lamento pelo confronto com a impossibilidade permanente; a necessidade de se perguntar perante os mistérios que a vida e o mundo apresentam. Todas estas linhas se cruzam na narrativa a que a frase dá o título, alimentando o livro “Sesimbra”, de Patrícia Reis, o primeiro da colecção “Portugal” (Centro Atlântico, 2024), história povoada também com fotografias devidas a Libório Manuel Silva, numa combinação que respeita o propósito da série: “o mesmo horizonte para a ficção e a realidade, em que criatividade literária e riqueza fotográfica mergulham na nossa geografia.”
A história vive com as memórias de um narrador de 59 anos, que aproveita o que aprendeu para dar imagem da família, dos afectos, das crenças, das convicções, da terra, das vivências desde a infância, num percurso em que não faltam os familiares pescadores, a paixão futebolística pelo Clube Desportivo de Sesimbra (ainda que designado pelo seu anterior nome, Ases Futebol Clube, devido a uma ligação familiar), o caminhar pela vila, uma certa identidade da vida local e alguns momentos de humor (como o da justificação apresentada para a opção quanto à cor da viatura 4L dada por Nicolau, o pai do narrador).
As lembranças da personagem principal recuam aos seus 9 anos, tempo de 1974, marco cronológico importante para quem foi assistir à revolução em Lisboa, levado pelo pai e pelo tio, ambos numa euforia de vitória que ajuda à decisão de partirem de madrugada para serem testemunhas do momento histórico – a criança pouco entendia, mas ficou-lhe gravada a frase do pai para o tio, de incentivo e de pressa: “Foi hoje, está a acontecer agora mesmo, trouxe o carro, vamos.” Perplexo fica o jovem: “Naquele tempo não se ia a Lisboa por uma razão qualquer, só por algo importante, uma consulta médica, alguém de família que chegava de comboio, raramente de avião, só tínhamos uns primos que podiam vir de avião, viviam nos arredores de Paris, mas já não os víamos há uns anos.” O mistério para a viagem desvanecia-se lentamente, ainda que o pai explicasse: “Vamos a Lisboa ver a revolução. (…) Vamos deitar estes gajos abaixo de uma vez por todas.”
A revelação da importância deste momento vai, depois, sendo dada pela mãe, Delmina, mulher reservada, mas arguta e sensível para transmitir ensinamentos e valores – quando, em Maio de 1974, a televisão informava sobre o fim do processo das três Marias, a mãe comoveu-se e explicou ao jovem: “Quando uma mulher é julgada por algo que não fez é como se fôssemos todas julgadas, todas as mulheres.” Têm as mulheres papel importante nesta história – além da mãe, também a irmã mais nova do narrador, Rosa, construtora da sua autonomia, desvinculada da terra mas não da família, que optou pela vida na capital; e ainda Susana, professora, que, num percurso inverso, vem de Lisboa para Sesimbra, para construir uma história de paixão e para sentir a família, “o melhor porto de abrigo de todos”, como dizia Nicolau.
“Eu fui ver a revolução, é verdade, mas mantive o alívio de ter regressado a Sesimbra. E a vida correu como correm todas as vidas. Com as dificuldades de sempre, as guerras da malta da pesca, a Câmara Municipal que não sei o quê, as festas, o dia do santo no 4 de Maio… a lenda que me perseguiu na escola.” Personagem fiel à sua terra, o narrador faz passar algumas observações que dão relevo à identidade: a confiança entre as pessoas (“hoje vivo numa aldeia do concelho, com o mar à minha beira, vou comprar legumes ao meu vizinho, conheço as pessoas pelo nome. Se sair e não tiver dinheiro, por ter deixado a carteira esquecida num outro casaco, não é uma questão, vá-se lá embora, paga depois, num outro dia, quando der jeito.”); a proximidade e o sentido familiar (“Sesimbra também é isso, famílias que se prolongam, que se mantêm agarradas como correntes de ferro de uma âncora”); a epopeia da vida (“as histórias do mar e das gentes de Sesimbra passam de geração em geração”). Pelas memórias, passa também o sentido da aprendizagem dos afectos – “o meu pai olhava para a minha mãe com a devoção dos amorosos e isso deixou uma marca indelével em nós” -, valores que se reproduziram na personagem que conta.
Está o leitor perante uma história bonita, que se passeia pelos contornos entre a vila e o Espichel, alimentada de olhares e de dizeres, de proximidades, de espaços e de figuras com que nos podemos cruzar, valorizando as histórias locais e um olhar poético sobre a vida.