Eu, que vivi o período do chamado verão quente de 1975, vislumbro algumas semelhanças com o atual momento político e social que se vive no nosso país, com tendência a agravar-se. A sociedade, em combustão lenta, mas progressiva, polariza-se. A comunicação social e as redes sociais demonstram-no. Os extremistas, entrincheirados na barricada da intolerância, destilam ódio ideológico, chegando às ameaças físicas. As propostas que violam os Direitos Humanos, que envergonham a democracia vão surgindo, mobilizando o batalhão de descontentes com o regime democrático, que identificam com «o viver à custa de quem trabalha» e com a corrupção.
A etnia cigana é sempre dada como exemplo dos que «vivem à custa dos outros». Recorde-se que, de acordo com um estudo realizado pela Universidade do Minho, em cada cem pessoas que beneficiam do rendimento de reinserção social, apenas 3,9 são de etnia cigana.
Claro que há políticos corruptos que devem prestar contas à justiça, mas a corrupção é transversal a toda a sociedade, embora os políticos apareçam em primeiro lugar porque são- e bem- os mais escrutinados pela comunicação social. Logo, quem quer realmente combater a corrupção, deve começar por não se envolver em atos ilícitos. E se o poder judicial não atacar em força a grande corrupção, os cidadãos devem ir para a rua gritar, sem, contudo, permitir o oportunismo de alguns políticos que pretendem ser arautos da honestidade, mas têm currículos sujos, bem sujos, por exemplo, pelos escândalos bancários.
O descontentamento para com o regime democrático- como se fosse a democracia a responsável pelas más ações de alguns- foi o gatilho para a erupção do populismo de extrema direita que apresenta propostas disparatadas, próprias de tempos medievais e não do século XXI. Surgiram políticos sem escrúpulos no que respeita aos Direitos Humanos, que recentemente defenderam a proibição de fotografar cenas em que estejam envolvidos membros das forças policiais. A tornar-se lei esta proposta, qualquer agente da autoridade acusado, por exemplo, de tortura, teria grandes hipóteses de ser inocentado por falta de provas; o mesmo aconteceria se os agentes fossem apedrejados ou recebidos a tiro por criminosos. Por outro lado, parece que se quer fazer crer que todos os agentes das forças de segurança precisam de ser defendidos através da proibição de filmagens, o que não é verdade. Muitos, a esmagadora maioria, dos agentes policiais são verdadeiros cidadãos respeitadores dos Direitos Humanos. O extremismo também se verifica no outro lado da sociedade, pois há quem defenda os que agridem os agentes no cumprimento das suas funções. Um dos exemplos mais recentes passou-se para os lados da Baixa da Banheira: dez agentes da PSP foram recebidos com pedras e garrafas ao procurarem evitar um linchamento público. Tão condenável é o ato de tortura por parte de um agente policial, como a agressão por parte da população aos agentes das forças de segurança.
Para combater o extremismo, é imprescindível combater as causas que lhe são inerentes, logo é indispensável trabalhar-se a cidadania nas escolas, é fundamental não esquecer que a construção de um bom cidadão começa em casa, é urgente que toda a comunicação social e os políticos sejam isentos, logo educativos, perante determinadas situações. As visões maniqueístas são corrosivas da democracia. Compete aos verdadeiros cidadãos, aos democratas impedir que a divisão, o ódio, a intolerância que provocaram confrontos físicos e atentados bombistas, acompanhados de várias mortes, no verão quente de 1975, voltem a fazer parte do nosso dia a dia.