O passado não pode ser esquecido

O passado não pode ser esquecido

O passado não pode ser esquecido

23 Abril 2017, Domingo
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Vivem-se tempos conturbados. Ideias velhas renascem da «existência de raças superiores e raças inferiores», das cinzas de campos de concentração, como se fossem ideias novas que irão «salvar a Europa»; que irão «salvar o mundo». A Grande Guerra, que mudou de nome porque outra se lhe seguiu ainda de maiores proporções, e a II Guerra Mundial foram provocadas pelos nacionalismos beligerantes, pelo racismo. Jazem nos baús do tempo, como se nunca tivessem acontecido. As velhas ideias travestidas de novas impõem-se, hoje, em países europeus ocupados e destruídos no passado, como a Polónia e a Hungria… até na França, pátria da liberdade, igualdade e fraternidade, essas ideias têm cada vez mais apoiantes.

 E em Portugal, a ida a salto para França, os exilados políticos, a polícia política, a censura, a fome, será que tudo isto foi real?

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Caro leitor, permita-me que lhe fale da escola do meu (do nosso?) tempo.

Ano de 1959, grupos de crianças percorrem a pé descalço vários quilómetros para entrar na escola às nove horas da manhã. No inverno saltitam pelas veredas cobertas de gelo, por vezes, salpicadas de vermelho, sangue que escorre de dedos abertos por pedra traiçoeira. Como equilibrista sem vara, atravessam ribeiros servindo-se de choupos tombados pela enxurrada que ligam as duas margens. Ao ombro a mochila feita de trapos onde levam mais saber do que comer. Na sala de aula crianças das quatro classes.  As da primeira classe vão para o quadro de cor negra; entre traços de giz, contas de somar. A professora desloca-se pela sala, passando com regularidade por detrás dos alunos que estão no quadro. Todos os que levam uma bofetada sabem que têm a conta errada. Um deles acerta, mas leva também, pois de acordo com o raciocínio da professora, a Alice, não sabendo fazer as contas e tendo acertado à primeira, só pode ter sido ajudada pelo colega do lado. A menina já devia frequentar a terceira classe, mas não sabe ler, nem escrever, nem fazer contas. É chamada de burra! Tudo acontece sob o olhar de Salazar e de Américo Tomás que, no plano superior ao quadro de ardósia, ladeiam Jesus pregado na cruz.  A Alice tem cinco irmãos, só o pai tem trabalho. Quando nada leva para comer, diz que vai almoçar a casa. Esconde-se atrás de pedras enormes, aguarda ver os companheiros entrar para as aulas da tarde, aparece, entra na cela de tortura. Caro leitor, «vi claramente visto» a Alice entrar nas hortas dos pobres camponeses, arrancar da terra cebolas cruas, limpá-las no único vestido que tinha e comê-las avidamente.

Um dia, a professora mandou o autor destas linhas estudar em casa, pois seria sujeito a chamada oral. Azar dos azares, o pai mandou o autor destas linhas tratar dos animais, coelhos, galinhas… A criança de sete anos só cumpriu a tarefa imposta pelo pai, já que o dia se fez noite. Na manhã seguinte, começa a aula, é chamado junto da secretária da professora, não responde às duas perguntas. De dentro da gaveta da secretária surgem duas orelhas de burro que são presas às suas com molas; vai para a janela ouvir os comentários jocosos de quem passa, perante a indiferença de Salazar e de Américo Tomás.

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