Por vezes, o silêncio de uma criança é um grito.
Nem todas as birras são escândalo, e nem todo o silêncio é paz. Há crianças que não gritam, não batem, não choram. Fazem tudo para corresponder, para se adaptar ao que julgam que os outros esperam delas. Mas também podem estar a sofrer. E, como se portam tão bem, o sofrimento passa despercebido.
Inês é uma dessas crianças.
“Sabes, uma vez o meu mano tinha uma amiga na escola que não falava. Ele pensava que era muda, mas percebeu que ela estava muito triste. Ela não tinha pestanas. Os olhos esbugalhados pareciam procurar alguma coisa. Ninguém reparou. Só o meu mano viu. Talvez, se alguém mais tivesse reparado, ela não estivesse assim tão triste.”
Quem me conta isto é a Inês, uma menina de 6 anos que chegou à consulta por recusar ir à escola e ficar muito aflita ao afastar-se dos pais. O diagnóstico de sintomas depressivos foi recebido com espanto: “Mas gostamos tanto dela, fazemos tudo por ela!”
É difícil aceitar que uma criança amada possa sofrer. Mas gostar não chega para que ela se sinta verdadeiramente vista.
A amiga do irmão é ela própria: uma menina que se sente muda, com olhos esbugalhados à procura de alguém que repare no que falta. No seu mundo simbólico, o que falta são “pestanas”. O irmão foi o único que viu o que mais ninguém via: que o silêncio dela era um pedido de ajuda.
As viagens constantes da mãe, a dificuldade de falar de sentimentos, os conflitos entre adultos… tudo isso foi criando em Inês uma sensação de insegurança, culpa e solidão. Muitas crianças sentem que têm de resolver os problemas dos adultos. Quando não conseguem, tentam não ser mais um peso. E assim nascem as máscaras, a ansiedade, os sintomas — que nas crianças se traduzem muitas vezes em comportamentos.
Porque às vezes o silêncio da criança é um grito.
A depressão infantil existe. E é mais comum do que se pensa.
Não aparece como a tristeza típica do adulto. Em vez disso, manifesta-se através de:
- Isolamento ou retraimento
- Irritabilidade constante
- Recusa de ir à escola
- Regressões (xixi na cama, linguagem infantil)
- Queixas físicas sem explicação
- Cansaço e apatia
- Medos intensos e desproporcionados
- Ansiedade de separação
- Perda de interesse
- Alterações no sono e no rendimento escolar
Estes sinais são muitas vezes confundidos com “manha”, timidez, preguiça ou fases normais do crescimento. Mas ignorá-los pode comprometer o desenvolvimento emocional da criança.
Nenhum pai ou mãe faz tudo certo. O mais importante é estar emocionalmente presente e procurar compreender — mesmo sem saber muito bem como.
Não é preciso sermos perfeitos. Mas é fundamental:
- Estar presente emocionalmente
- Ouvir o que a criança diz — e o que não diz
- Validar o que sente, mesmo que nos pareça pequeno ou exagerado
- Falar de sentimentos com clareza e verdade
- Proteger a criança das tensões dos adultos
- Garantir um lugar de valor, segurança e aceitação — mesmo quando se porta “mal”
Talvez o que falte a muitas crianças não sejam brinquedos… mas “pestanas”.
Alguém que olhe e veja que, por trás do silêncio, há dor.
A psicoterapia pode ser esse lugar.
Onde o silêncio deixa de doer. Quer para a criança quer para a família que a ama.