Há quem fale muito da liberdade de escolha. Uma escolha no sentido quotidiano ou da fantasia liberal para o utente consumir o que bem quiser (como se a gestão privada não se regesse pelo lucro) Mas onde está esse falatório para a liberdade de escolha sobre o futuro do nosso território? Onde ficou o direito de escolhermos o que queremos para as nossas localidades? Os interesses turístico-imobiliários em Tróia têm vindo a retirar às populações o direito de intervenção democrática e popular sobre os projetos que estão a dizimar toda a península com crimes ambientais e a colonização por ultra-ricos. E a quem é da terra resta escolher se tapa os olhos ou se junta na denúncia da ruína ambiental, habitacional e social em curso.
No passado dia 23 de setembro, o Bloco de Esquerda organizou um périplo entre Tróia, Alcácer do Sal e Melides, para denunciar a construção de grandes complexos turísticos em zonas de biodiversidade sensível do litoral alentejano. Gruas, buggys e vastas vedações rasgam o areal e o mato do litoral alentejano.
A vista mais escandalosa é mesmo a do projeto NA PRAIA: um resort de luxo de 200 hectares, promovido pela mulher mais rica de Espanha e herdeira do Grupo Inditex, em cima de dunas. As altas gruas denunciam o atentado ambiental que está a ser feito num dos últimos troços de praia selvagem portuguesa. As obras começaram janeiro deste ano sem licença. Este pormenor não passou despercebido, e em março a associação DUNAS LIVRES denunciou esta ilegalidade e as múltiplas violações das regras da proteção da natureza e da biodiversidade. No mesmo dia, a Câmara Municipal de Grândola, presidida pela CDU, emitiu uma licença precária de estaleiros ao projeto. A consequente fiscalização do ICNF registou crimes ambientais graves.
A associação avançou com uma providência cautelar, que, uma vez aceite Tribunal Administrativo de Beja, conseguiu parar as obras. Esta pausa durou apenas um mês, quando a autarquia emitiu uma declaração de Projeto de Interesse Nacional (PIN), uma classificação que diminui burocracias associadas à construção.
Como o NA PRAIA, múltiplos projetos megalómanos com centenas de piscinas privativas, campos de golfe, hotéis e ocupação abusiva de zonas vitais da biodiversidade, conseguiram avançar graças a este sistema PIN. Diria o nome que estes devem existir para projetos de interesse nacional, que criam emprego, produtividade. Ora, é enganoso: estão em causa projetos turísticos de luxo que vão construir em zonas de reserva ambiental, com conversas vazias de sustentabilidade e ‘eco’-resorts, detidos por grandes grupos económicos, como a SONAE, a Amorim, a Vanguard, um dos maiores fundos imobiliários internacionais e que ocupou várias áreas desta costa alentejana.
Os empreendimentos projetados vão urbanizar 2/3 da península de Tróia, construindo à margem da orla costeira e em cima de habitats de espécies ameaçadas. Coloca-se ainda a gestão errática dos recursos naturais, como a água. O futuro Troiaecoresort vai contar com 125 piscinas privativas – numa zona que está em seca há dois anos – obrigando a furar mais e mais fundo o aquífero subterrâneo. Entretanto, os pequenos agricultores estão a deixar de ter acesso à água, porque essa água está a ser canalizada para um modelo de consumo irresponsável.
Para além das barbaridades contra o ambiente, estes projetos de turismo de luxo afastam cada vez mais as populações desta região, com a aceleração do fenómeno especulativo da habitação e o encarecimento da ligação fluvial entre Setúbal e Tróia. É praticamente uma privatização total destas zonas, exclusivas às elites endinheiradas.
Que casa vão os trabalhadores destes projetos – a maioria migrantes em situação precária – conseguir pagar? Que vai ser feito de tradições como a festa centenária dos pescadores de Tróia, que a partir do próximo ano serão vedados pela SONAE? Quanto tempo nos resta até as infraestruturas não aguentarem a pressão oriunda destes negócios insaciáveis? Que restará da comunidade local, expulsa pela gentrificação? Estes espaços passam a ser acessíveis apenas a turistas de luxo e não às populações que conhecem este território e que sempre aqui viveram. Tudo isto sob a conivência de instrumentos da corrupção económica, a financeirização da habitação e a massificação do turismo selvagem.
O Bloco vai apresentar um projeto para eliminar e reverter todos os Projetos de Interesse Nacional nesta região, de modo a travar a criação de empreendimentos turísticos de luxo em áreas protegidas, e combater casos que estão sob investigação da justiça. Foi em Tróia que José Sócrates implementou o seu primeiro PIN quando chegou ao poder. Dois projetos, nomeadamente o da Comporta e o da Herdade do Pinheirinho, são projetos PIN que foram dados por Manuel Pinho (ministro da Economia de Sócrates) ao Grupo Espírito Santo e que estão a ser investigados pelo Ministério Público.
Estamos a falar do pior que há em Portugal. Da corrupção, da negociata, da especulação imobiliária, do turismo que tudo destrói e que privatiza, elitiza e ocupa toda uma zona natural, que deixa de estar disponível à população que sempre a utilizou, às tradições dos pescadores e de quem usa esta terra.
Ainda vamos a tempo de travar todos estes projetos. Nenhum deles devia ser PIN: são projetos turísticos de luxo, a maioria em zonas de emergência e proteção ambiental, o que os torna ilegais, outros em zonas que deviam ser protegidas e que só não são protegidas precisamente por causa do lobby imobiliário. A classificação PIN deve ser reservada para outro tipo de projetos que criam emprego e são mais importantes para o País.
Estes projetos foram anunciados como promessas de desenvolvimento. Mesmo se tal fosse verdade, a que custo seria esse desenvolvimento? Da exploração de mão-de-obra mal paga? Do agravamento da crise da habitação? Do despejo da comunidade local? Da destruição massiva do ecossistema e dos recursos naturais? A população tem direito a escolher as prioridades do investimento público. A escolher o desenvolvimento de serviços públicos, como creches, centros de saúde e casas a preços acessíveis. Ou alimentar a ganância dos grande interesses privados e dos maiores casos de corrupção que Portugal já viveu.
É preciso travar a compulsão dos Governos para pôr à venda tudo que é o nosso património comum. Há que fazer uma escolha: preservar o litoral alentejano para daqui a muitos anos nós ainda o termos e podermos usufruir dele, ou então aceita privatizá-lo e destruí-lo.