A COVID-19 é uma mata-velhos. Coisa feia de se dizer, mas do mal, o menos (e contra mim falo): as epidemias matam, e entre ceifar a eito ou escolher principalmente aqueles que já viveram uma vida… Um falecimento, qualquer que seja, é uma tragédia, porque a vida é o bem supremo. Mas a morte em idade avançada é mais natural e aceitável.
De repente, veio-me à lembrança a abominável expressão «peste grisalha», mimo de um asno que esteve no poder, para se referir ao peso dos encargos públicos com os seniores, acirrando a guerra entre gerações. Voltamos a ouvir o relinchar de cavalgaduras daquela estirpe, eufóricos com a expectativa da razia na velhada – sejam os retardados que se acoitam pelas redes sociais para aí despejarem o lixo das minúsculas e sórdidas mioleiras, ou os inteligentes teóricos que anteveem na mortandade dos idosos um alívio para a despesa pública e uma boa oportunidade para a economia. Esta espécie de gente merece-me dois sentimentos: asco, pela desumanidade que patenteia, mas também comiseração – não devem ter velhos na família nem no círculo de amigos, os desgraçados, e não sabem o que perdem.
Além destas bestas, saltaram do covil outras espécies repugnantes: aquelas que, enquanto um povo sofre, não têm pejo em aproveitar-se, quer na especulação descomedida de preços, quer na cobrança de juros indecorosos, quer nos despedimentos oportunistas. Há que pará-los.
Voltemos à peste. A mãe Natureza é-nos generosa. Mas as mães, mesmo as mais dedicadas e extremosas, também se zangam – para chamar à atenção e corrigir atitudes e comportamentos despropositados e incorretos, para educar. A Natureza parece ter estes desígnios. E quando se zanga reduz-nos à nossa condição de grãozinhos de pó no infinito universo que criou. É então que assumimos a nossa insignificância e, humildes porque derrotados no tudo que temos como definitivamente adquirido, abrandamos nos nossos egoísmos, nas nossas vaidades, na nossa ânsia consumidora, no nosso instinto destruidor, enfim, na nossa arrogância e nos nossos exageros de seres inebriados da ideia de que nada nos é impossível e de que tudo nos é permitido – como se fôssemos uns deuses na Terra. E corrige-nos. Põe-nos no nosso lugar, é o que ela faz. Se estes dias penosos que atravessamos tivessem o condão de nos fazer refletir e melhorar, a todos, como seres humanos cientes das nossas limitações e mais respeitadores dos nossos semelhantes e do nosso meio ambiente, ganharíamos tanto.
No que já ganhámos, foi no espírito de missão que temos visto nos profissionais de saúde e dos lares de idosos, nos bombeiros e nas forças de segurança, nos profissionais e voluntários das variadíssimas instituições que prestam cuidados e espalham solidariedade e amor pelo país. Não há elogios que bastem ao trabalho e à generosidade destes heróis. Curvo-me, reconhecido e emocionado, perante todos eles. Bem hajam e que tenham a fortuna de resistir à praga.
A desconfiança em quem nos governa chegou a um ponto, que o crédito que lhes damos é poucochinho: quando nos dizem que já fizeram, a gente duvida, e quando afirmam que vão fazer, a gente fica de pé atrás. Em relação ao coronavírus, o que percebemos é que não agimos, reagimos – pouco dados a prever cenários, somos mais do fazer em cima no joelho. Em meados de janeiro, quando da China nos chegavam ecos de tragédia, ficámos da espectativa, considerou-se que o vírus não era caso para alarme em Portugal, que as probabilidades de cá chegar eram reduzidas. Que raio de atitude, numa época globalizada, com o mundo cá e lá, em trocas e contactos permanentes, diários, ó céus! Não estaríamos, hoje, bem mais preparados e equipados para a nossa guerra à pestilência, se tivéssemos sido mais sensatos e proativos?
Bom, mas agora, o essencial é resistir. A Humanidade tem sido assolada por incontáveis e terríveis epidemias. A Peste Negra, a Tuberculose, a Varíola, a Gripe Espanhola, o Tifo, o Sarampo, a Malária, a SIDA e outras, levaram milhões sem conto. Mas hoje, temos ao nosso dispor os conhecimentos e os recursos que nos permitirão descobrir a maneira de derrotar em pouco tempo o vírus que nos atormenta, e de salvar a maior parte daqueles que o contraíram. Valha-nos isso.