Bocage e a liberdade

Bocage e a liberdade

Bocage e a liberdade

26 Abril 2023, Quarta-feira
Beatriz Espada Sobral

“Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno.”

Este é Bocage, ainda que muitos seus conterrâneos o não saibam. Bocage, aquele conhecido pelos demais, somente pelos alhos e bugalhos que deixou para a história, na sua poesia erótica e satírica.

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Não sabem, no entanto, esses demais, a obra bela que fez esse poeta, que delirava com o seu amor, que gritava pela liberdade, numa hora em que os que gritavam eram calados, e cujo eu poético se embrenhou nos ideais românticos, corrente onde foi percursor, em Portugal, e que, na época, por toda a Europa, floria.

Quanta beleza e musicalidade subjaz nos sonetos em que Bocage se assume como um verdadeiro herói romântico, que morre e vive de amor (“Em que estado, meu bem, por ti me vejo, / Em que estado infeliz, penoso e duro! / Delido o coração de um fogo impuro, / Meus pesados grilhões adoro e beijo.”).

E que, à semelhança dos seus contemporâneos românticos, enlouquece por esse tal febril amor e que, sobretudo, sofre, sofre às mãos desse mesmo, que lhe é, naturalmente, inatingível.

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Ainda assim, no meio de tanto e tão intenso sofrimento romântico, são de salientar os sonetos calmos nos quais o eu lírico nos convida a escutar as flautas dos pastores, numa paisagem deliciosamente bucólica (“Olha, Marília, as flautas dos pastores / Que bem que soam, como estão cadentes! / Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes / Os Zéfiros brincar por entre as flores?”).

Foquemo-nos, no entanto, na poesia que escreveu e que à liberdade e à razão dedicou, assumindo-se como um revolucionário, perguntando “Liberdade onde estás? Quem te demora? / Quem faz que o teu infame influxo em nós não caia? / Porque (triste de mim!) porque não raia / Já na esfera de Lísia a tua aurora?”.

Quanta curiosidade reside no facto de que a história só se fez, e faz, de avanços e recuos. No decorrer da presença do Homem nesta Terra, que se diga, desde já, não passou de um grão de areia, sempre houve a necessidade de revolucionários que fizessem frente a um qualquer líder despótico, que no trono se senta.

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No tempo de Bocage, os artistas usavam a sua arte para criticar a falta de liberdade, oferecida pela situação política vigente, que passava pelo uso arbitrário do poder, pelo qualquer monarca que, naquele momento, exercia a sua vontade inquestionável.

Cada monarca deveria esforçar-se, ao máximo, não para que ao seu povo fosse acessível uma vida boa e digna, mas para que fizesse boa figura, perante os demais monarcas, no cenário internacional.

E pobres daqueles poetas que, como Bocage, sonhavam e escreviam sobre um país livre do uso arbitrário do poder e livre da governação de quem não foi escolhido por aqueles que a ele se devem subordinar.

Olhavam os poetas portugueses para França e inspiravam-se nos ideais defendidos pela mesma, aquando da tal revolução, que tirou um rei absolutista do trono e o substituiu por uns quantos republicanos que se ocuparam de espalhar o terror, ao mesmo tempo que gritavam as palavras “Liberdade, Igualdade, Fraternidade!”.

Mas pronto, terror espalhado à parte, tal revolução serviu para abrir as portas do que viria a ser o início do fim da subjugação do povo a quem ele não escolheu. Pelo menos na Europa… Se soubesse Bocage que, tantos anos após ter fechado os olhos, viveríamos num Portugal cujo líder é escolhido pelo povo, de maneira democrática, tal não seria a felicidade do mesmo! No entanto, tal não seria a igual tristeza, quando soubesse Bocage que a democracia está em crise.

Quantos morreram para que hoje pudéssemos, livremente, votar. Quantos morreram para que hoje pudéssemos, livremente, dizer que não concordamos com o regime vigente. Quantas mulheres lutaram e morreram para que hoje mulheres como elas possam, livremente, votar.

E quantos, mesmo assim, ignoram, hoje, o seu direito ao voto, passando, no entanto, grande parte do seu tempo a criticar o regime vigente, porventura, no Facebook. Quem ignora o seu direito ao voto, não sabe o que é viver sem ele. Não sabe o que é ter a sua vida condicionada e instrumentalizada pelos desejos e devaneios de um déspota qualquer.

Quem, hoje, livremente, se senta em casa a criticar o governo, ignorando, no entanto, o seu direito ao voto, não imagina a indignação e a angústia sentida por Bocage, quando escreveu “Liberdade querida e suspirada, / Que o Despotismo acérrimo condena; / Liberdade, a meus olhos mais serena, / Que o sereno clarão da madrugada!”.

Quão sufocado se deve sentir aquele que anceia tão desesperadamente pela merecida liberdade e não a recebe. Pobres aqueles que desperdiçam a sua vida ao serviço de um qualquer que maior que os outros se acha, e que por isso tem legitimidade para fazer dos restantes bonecos, na sua grande casa de brincar.

Celebra-se, em Abril, o dia da libertação de Portugal, dos grilhões da subordinação àquele regime fascista, que prendeu o país no subdesenvolvimento. Bocage ter-se-ia deliciado, certamente, com a revolução de Abril, teria gritado, a plenos pulmões, “Viva a Liberdade!”, orgulhosamente, empunhando um cravo na mão.

Finalmente, chegava a tal liberdade, por quem ele tanto chamou e que alguns tanto fizeram demorar. Portugal livrou-se das amarradas da ditadura fascista nesse dia 25, no entanto estava longe de ser abraçado pela serenidade da Liberdade.

Após o 25 de Abril, iniciou-se um período de profunda instabilidade política e, como é costume, há sempre alguém que se aproveita da poeira da instabilidade. Como pode um país se afirmar livre, quando rouba os seus agricultores?

Aqueles que cultivam o sustento de toda a população viram-se despidos dos seus direitos e viram as suas terras roubadas à luz do dia, por quem afirmava ter o direito de as roubar. Mas que legitimidade pode ter um ladrão?

O 25 de Abril pode ter libertado Portugal de uma ditadura fascista, mas o mesmo Portugal quase se viu mergulhado, nos tempos que se seguiram, numa outra ditadura, tão ilegítima e assombrosa como a outra.

É urgente desmitificar a ideia de que a liberdade foi conseguida no dia 25 de Abril de 1974. Nesse dia, podem ter sido abertas as portas que permitiram que a liberdade entrasse, mas o caminho percorrido para lá chegar, ainda foi longo. Porventura, ainda não terminou.

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