Sebastião da Gama tinha o hábito de, no final de cada poema, localizar e datar o momento da sua escrita – em 695 poemas conhecidos (não considerando as 239 quadras), há 137 em que não surge a referência ao local de criação e 53 que não estão datados -, prática que parece associada à diarística, tanto mais que, em alguns casos, menciona o local quase exacto do sítio em que escreveu – uma larga maioria dos poemas surge a partir da “Arrábida” (aparecendo referências mais precisas a Alto da Mata, Convento, Lapa de Santa Margarida e Cruzeiro, Jardim de S. Pedro de Alcântara, Pocinho da Torre, Estelita, Olivalinho, Bom Jesus, Alpertuche), mas também os há produzidos em Lisboa, Parede, Azeitão, Paris, Estremoz, Coimbra, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Castelo de Vide, mencionando uns poucos terem sido escritos “Algures” e outros durante um trajecto, como “de Cacilhas a Azeitão”, “em frente a Coimbra”, “comboio do Douro”, “entre Azeitão e Setúbal”, “trajecto Azeitão – Cacilhas”. Apenas um menciona o espaço caseiro – “nossa casa”, no poema “Largo do Espírito Santo, 2 – 2.º”, escrito em Estremoz, trazendo para título a morada onde Sebastião da Gama e a esposa, Joana Luísa da Gama, viviam.
Embora a Arrábida integre a freguesia de Azeitão, a verdade é que os dois espaços acabam por funcionar como comunidades próprias, tendo a ida do jovem poeta para a Arrábida por razões de saúde sido a responsável pela localização de escrita dos poemas maioritariamente no território arrábido, onde a família vivia. Azeitão, incluindo Vendas, Vila Nogueira e Aldeia Rica, são locais que aparecem como espaços de escrita de cerca de uma trintena de poemas, ainda que a temática ou as referências locais não perpassem por todos eles.
Entre as mais de duzentas quadras que Sebastião da Gama escreveu, há três que referem Azeitão – uma, dedicada à beleza das azeitonenses, “tão belas, tão airosas” que fazem “chorar ‘té as próprias rosas”; outra, dando a ideia de que a terra é um jardim, onde é “cada moçoila, uma flor”; finalmente, a terceira apela às jovens de S. Simão para terem cuidado com o seu coração. Estas quadras, enaltecendo a juventude, cruzam-se com os viras de Vila Nogueira e de S. Simão, datados de Dezembro de 1941 e de Março de 1942, respectivamente: no primeiro, são evocados os encontros de namorados junto da Fonte dos Pasmados, as promessas não cumpridas, as separações por ida do rapaz para a tropa ou por haver troca de par; no segundo, a pretexto de um casamento, há o repicar dos sinos e a garantia de fidelidade dada pelo Menino da Senhora da Saúde, cuja festa é desejada pelo ambiente festivo (missa, sermão, foguetes, procissão, vinho e arraial). A propósito do vinho, é comovente o soneto de Dezembro de 1942, que remata — aquando da distribuição de prendas pelo Menino Jesus, elogiosamente para os néctares azeitonenses: antes de se retirar dali, depois de cumprida a sua tarefa, o Menino decide “pra Seu divino pai, mai-los anjinhos, / levar o saco cheio de bons vinhos / moscatéis lá das cepas de Azeitão.”
A dimensão da religiosidade torna-se evidente nas “Loas a Nossa Senhora da Arrábida”, que acompanham a peregrinação desde Azeitão até ao Convento e volta, demonstrando as quadras desta composição a manifestação da fé dos devotos azeitonenses e narrando o contentamento do regresso, em comunhão com a imagem da Virgem a quem imploram protecção.
Prova do afecto a Azeitão é um poema que tem o nome da terra constituído por quatro quadras, havendo a separar os versos a palavra “Azeitão”, quase como se de um eco se tratasse. “Terra santa ond’ eu nasci” é a primeira afirmação dedicada a Azeitão, nomeada “beleza sem igual” ou “brilhante refulgente”, havendo ainda espaço para a evocação do romance de Pedro e Inês e para afirmar o orgulho de, ali, ter visto o dia pela primeira vez, concluindo o poema com uma declaração de amor: “Só quem não te conhecer / Azeitão / não te ama, não t’ elogia.”
Não menos poética imagem é trazida pelo soneto “Lenda de Azeitão”, de Janeiro de 1942, em que o leitor contempla “a bela deusa Arrábida”, filha de Zeus, a mirar a luz do dia. Num momento de afago dos cabelos, algo acontece que a leva a gritar de aflição: “pois lhe caíra aos pés, tão linda, a Azeitão / – da sua cabeleira a jóia mais brilhante.” O recurso à mitologia para enaltecer a importância do local, usa-o também Sebastião da Gama para mostrar o Portinho da Arrábida, prenda que teria sido ofertada a Vénus, no seu aniversário, por seu pai, Jove, a conselho de Apolo. Mas o território da Arrábida, distinto do de Azeitão, é outro peculiar terreno do poeta no caminho da “Serra-Mãe”…
Vivendo na zona do Portinho, Sebastião da Gama exprimiu fortemente o seu apego a Azeitão, tomando como pretexto não só a beleza natural, mas também o facto de ali estar a sua raiz e de ali, como confessa no soneto escrito a propósito da escola primária, de Novembro de 1941, ter bebido “o leite do Saber”.