Caro leitor, vou falar de participação cívica autárquica (ou democracia participada) e dos seus instrumentos mais conhecidos: os chamados Orçamentos Participativos (OP). Em artigo anterior abordei os OP, de que foram pioneiras algumas prefeituras (câmaras municipais) do Brasil a partir dos anos 70 do século XX, tendo-se destacado: Boa Esperança (Espírito Santo); Piracicaba (S. Paulo) e Lages (Santa Catarina). Surgiram no declínio da Ditadura Militar, por crescente pressão e mobilização populares, pois queriam implantar no país um poder político democrático, participado pelos cidadãos.
Em 1988, após a democratização do Brasil, os OP tiveram acolhimento constitucional, o que permitiu o seu desenvolvimento a partir de 1989. Porto Alegre (Rio Grande do Sul) tornou-se uma referência mundial de democracia participada. Deu-se, então, a expansão para muitos países (França, Bélgica, Canadá, Espanha, Uruguai e Argentina), assim como um pouco pelo resto do Brasil. Neste país, surgiram variantes imaginativas que permitiram a sua modernização e lhes têm dado vitalidade: OP Digital (facilita a participação cidadã: os munícipes podem indicar facilmente o que desejam ver realizado e participar nas votações); OP Criança (estimula a participação das crianças e jovens a partir das escolas, com vista à melhoria destas e dos bairros de origem dos alunos). Trabalha-se, actualmente, na sua extensão a grupos sociais vulneráveis (mulheres, negros, indígenas, sem-abrigo, GLBT, deficientes, idosos) e dá-se formação a delegados, conselheiros e técnicos das prefeituras.
A ONU acha que são uma das 40 melhores práticas de gestão pública urbana e o Banco Mundial um bom exemplo da acção entre os governos (no caso, locais) e as suas comunidades.
Em Portugal, segundo dados públicos (que não confirmei em documentos oficiais), o primeiro OP terá ocorrido em Palmela, em 2002, com a participação de 4% dos munícipes (cerca de 1600). Alastrou a autarquias (municípios e freguesias) de vários partidos e um pouco por todo o país. De cerca de 20 em 2008, atingiu-se 118 em 2016, que cativaram 40 milhões de euros (20 milhões para OP co-decisórios ─ os cidadãos definem e elegem o que deverá ser realizado ─, ao passo que em 2013 havia 85% consultivos ─ em que se ouve apenas a opinião das pessoas). E desses 118 houve 30 geridos por jovens. Tudo isto pôs o país na dianteira internacional, segundo Nelson Dias, da Associação In Loco (responsável pelo Observatório das Práticas da Democracia Participativa). Em 2017 o próprio Governo criou o primeiro OP neste nível da administração (que recolheu 80 mil votos), ao qual afectou 3 milhões de euros (distribuídos por 38 projectos vencedores, 2 de âmbito regional e 36 de âmbito nacional).
Apesar deste crescente progresso, Giovanni Allegretti (investigador no CES-Universidade de Coimbra) e Nelson Dias (In Loco) referem que os OP não melhoraram a transparência das contas autárquicas mas mobilizaram muitos abstencionistas: contudo, 10% dos munícipes que participam nos OP não votam nas eleições autárquicas.
As limitações apontadas por estes dois investigadores não impediram o incremento deste instrumento de democracia participada, que deu origem à criação da RAP-Rede de Autarquias Participativas (inserida no Projecto Portugal Participa), composta por 63 autarquias.
Mas a democracia participada não se esgota nos OP, há outras formas mais adequadas à natureza dos problemas com que se debatem algumas autarquias e às características das populações. É o que defendeu Nuno Costa, presidente da Junta de Freguesia de S. Sebastião (Setúbal), numa recente entrevista ao jornal «O Setubalense». O autarca tem-se destacado em envolver e co-responsabilizar as populações na construção de soluções duradouras para os problemas. Por isso acha que os OP nem sempre são o melhor instrumento, por falta de participação construtiva e continuada nas decisões.
E tanto pior quando são apenas consultivos ─ os OP de faz-de-conta ─ em que a participação dos munícipes não passa de uma encenação e a sua opinião, na prática, não conta para nada. Há até alguns em que as fichas de recolha de dados se parecem com um quebra-cabeças, desincentivando a participação cidadã.