Vou destilar o essencial numa única frase: o Bloco de Esquerda tinha razão, e Alcochete é a opção recomendada pela comissão técnica independente para a localização do novo aeroporto.
Há séries de televisão que se arrastam por tantas temporadas que rangemos os dentes de desgosto com a degradação das relações entre personagens e a perda do fio narrativo. O relatório da comissão técnica independente apresentado esta semana comprovou os múltiplos óbvios da série do novo aeroporto: PS e PSD andaram a arrastar a produção desnecessariamente e já devíamos ter encerrado a história há muitos episódios, quando o final já era tão evidente.
Em cenas dos episódios anteriores: há mais de 50 anos que se anda a discutir a localização do novo aeroporto, com mais tramas e desditos que nos Morangos com Açúcar. Durante o governo de Sócrates, por sugestão da CIP, Alcochete foi submetida a uma avaliação ambiental estratégica e escolhida como a melhor opção. Com a privatização da ANA, o governo de Passos Coelhos submeteu-se à opção Montijo. Em 2018, António Costa dizia que o aeroporto no Montijo era “irreversível”.
Em janeiro de 2019, o Governo PS assinou um contrato com a ANA, para expandir a capacidade do aeroporto da Portela e construir um aeroporto complementar no Montijo. O contrato previa 520 milhões de euros para o aeroporto do Montijo e 650 milhões de euros para o aeroporto Humberto Delgado. Ficava claro que a prioridade da concessionária Vinci, liderada por José Luís Arnaut, era expandir a galinha dos ovos de ouro – a Portela – e gastar o mínimo possível numa infraestrutura alternativa.
Em fevereiro de 2020, tanto António Costa como Pedro Nuno Santos diziam não haver “plano B” ao Montijo. O que aconteceu depois foi uma sucessão de quase acasos – o Governo esqueceu-se de uma lei que dava poder de veto às autarquias sobre investimentos com impacto nos seus territórios, e algumas vetaram. Em troca de uma promessa de alteração dessa lei, António Costa comprometeu-se com Rui Rio a fazer um estudo comparativo (Avaliação Ambiental Estratégica) entre várias localizações. Apesar do episódio do despacho do gabinete de Pedro Nuno Santos revogado pelo Primeiro Ministro, o negócio sempre passou pelo acordo do bloco central.
Aqui chegados, só podemos concluir que, mais uma vez, o bloco central atrasou o país em nome dos negócios com grandes capitais estrangeiros.
A opção pelo Montijo nunca foi uma opção estratégica, porque teria sido escolhido apenas para aumentar rapidamente a capacidade da Portela. O Montijo, com o seu prejuízo ambiental e para as populações, não passaria de um dano colateral da decisão de negócio entre a ANA e o aeroporto da Portela. Esta solução era simplesmente a mais barata, que não envolveria qualquer investimento dos acionistas, estando desenhada para ser paga apenas com as receitas aeroportuárias do aeroporto de Lisboa.
Tantos anos para que a conclusão mais óbvia seja aquela que era visível aos olhos de todas. Este episódio da novela demonstra o que já era óbvio para o país: há um arrastar permanente das decisões estratégicas e o atraso do país é o atraso do Bloco Central. Perguntamo-nos então porque é que demoramos tanto tempo a fazer o óbvio? O atraso português que advém do óbvio: o PS e o PSD são parte do problema, não das soluções.
Costa diz que a decisão política vai ser entregue a uma comissão técnica independente, mas afinal a decisão não conta para muito e remete a decisão para o próximo Governo. Montenegro vai criar um grupo de reflexão interno no partido – afinal, o PSD nunca sabe o que defende. É o circo do cálculo eleitoral que comanda os debates estruturais do país e que comprova como o centrão não está à altura das grandes decisões.
O tempo acaba por dar razão ao Bloco e à necessidade de resistirmos aos tentáculos dos negócios que vendem o nosso país à custa do ambiente. Com o relatório agora público, não há outra posição aceitável. Alcochete, levanta voo.
As notícias que apontam a posição do Bloco em defesa da solução de Alcochete envelheceram bem. A identificação de Alcochete como a opção mais vantajosa não foi spoiler nenhum: é simplesmente óbvio. Bastava tirar as palas dos interesses privados.