Em 1668, o padre António Vieira definiu-a: “É a Guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a Guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as Vilas, os Castelos, as Cidades. (…) É a Guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades.”
Como não recorrer a Vieira no momento em que passa um ano sobre a mais recente guerra em território europeu, justamente aquele em que se pensou que, após as duas guerras mundiais, havia que acabar com este belicismo? O termo do conflito não tem calendário, mas espera-se que outra fase virá – assim o desejam os dez poetas ucranianos reunidos na antologia “Quando a primavera chegar – 10 poemas de guerra”, editado pela Casa Fernando Pessoa, disponível em formato digital em acesso gratuito.
Os dez poemas (de Borys Khersonsky, Halyna Kruk, Kateryna Kalytko, Kateryna Mikalitsyna, Oleg Kadanov, Oleksandr Irvanets, Olga Bragina, Pavlo Korobchuk, Svitlana Povalyaeva e Vasyl Makhno, nascidos entre 1950 e 1984), traduzidos por outros tantos poetas portugueses (João Luís Barreto Guimarães, Jorge Sousa Braga, Matilde Campilho, Miguel Martins, Raquel Nobre Guerra, Regina Guimarães, Ricardo Marques, Rosalina Marshall, Tatiana Faia e Vasco Gato), foram escritos nos primeiros tempos desta guerra sobre a Ucrânia e têm sido divulgados pela National Translation Month (ligada à tradução literária) e pelo projecto Chytomo (ligado à cultura e à edição).
Por estes textos passa o tom irónico (“E então irrompeste sem aviso prévio, / trouxeste à tua amante um bouquet / de tanques, helicópteros, mísseis de cruzeiro em vez de flores, / disseste-lhe: a culpa é tua, aqui está uma bomba, uma granada, / Cabra, como te atreves a magoar o teu irmão mais velho?”, de Khersonsky), o lamento (“Na discoteca mais próxima as crianças / estão a dormir, / estão a chorar, / e estão a nascer / para o mundo em que agora é impróprio para viver.”, de Kruk), a denúncia (“Quem haveria de saber? Toda a gente sabia. / A iminência assemelha-se a uma poeira radioactiva, / desfazendo os vínculos entre palavras / e transformando o que se disse / num tumor sanguíneo.”, de Kalytko), a demanda da coragem (“é tempo de ler / o manual da reincarnação: / em caso de emergência / 1.a) partir o vidro da calma / 2.b) apagar a camada protectora do medo”, de Kadanov), o assumir do perigo (“Daqui não há como sair porque é demasiado curta a distância a um tiro depois da paz”, de Bragina).
Mas por estes poemas passam também versos de revolta (“Iremos sobreviver a isto, iremos resistir, / sob céus de paz limparemos a nossa terra / dos corpos que o maldito vampiro careca / com olhos de leitão enviou para aqui.”, de Irvanets) e de esperança, como sugere Korobchuk, num texto que defende o adiamento do amor e contém o verso responsável pelo título da antologia: “quando a primavera chegar e o inverno abrandar / quero oferecer-te flores / mas primeiro deixa que a nossa defesa anti-aérea / derrube os mísseis inimigos.”
A dificuldade do tempo passado sob a guerra leva Povalyaeva a hesitar, porque “não se pode confiar na esperança e também não se pode confiar no medo”, verso vindo de quem perdeu o filho, activista ucraniano, na frente de batalha em Junho de 2022. A dor acaba por pintar a tela gigante do que vai produzindo esta guerra (por certo, não diferente das outras), bem expresso no último verso do poema de Makhno: “Sangra – meu coração – sangra.”