Ideias importantes que perpassam pelas temáticas destes “101 Contos de Bolso”, de Maria Teresa Meireles, relacionam-se com o comum que todos somos, num desafio à nossa forma de estar e de viver o mundo e à construção social em que estamos inseridos: convivem cenas de tédio de algumas vidas com os pequenos infernos que os outros acabam por criar ao minimizarem os efeitos provocados sobre a vida dos vizinhos (a situação da gaiola de periquitos que alimenta um dos contos é paradigmática deste abuso); há instantes em que surge a necessidade de degustar o tempo interior e de olhar o mundo (em torno de um chá, por exemplo) e outros que são ocupados por uma epifania contributiva da descoberta da nossa identidade; conflituam a forma plural de sermos, em que um sujeito se compõe de diversificados e antagónicos eus, com a culpa sempre atribuída aos outros, fruto de uma raiva e de um olhar de desprezo sobre o que nos cerca; viaja-se até à infância, em que se cruzam as crianças “adoráveis” (mas formatadas e intimamente pobres) com a ternura resultante de momentos tão memorizados como o acto de ter aprendido a contar pelos dedos da mãe; revisita-se a escola como espaço de convívio e de estranheza, resultante de fenómenos tão excêntricos quanto as aulas à distância no período da pandemia (e o que elas possibilitaram que se visse do desconhecido que todos mantemos) ou quanto a estranheza dos pais perante as atitudes dos filhos na comunidade escolar; ridicularizam-se as mitologias do quotidiano, expressas nas datas comemorativas que nada alteram quanto ao rumo ou ritmo das vidas e num duvidoso poder argumentativo em torno de um “achismo” desmesurado; ironiza-se sobre o absurdo, a superficialidade e as manias de algumas vidas e sobre os “homens das cavernas” que, por vezes, invadem os nossos espaços. Enfim, um leque vasto de quotidianos, retratos de um olhar sobre o mundo de forma crítica.
As histórias rápidas, depuradas, por vezes com final abrupto, inesperado, deixam o leitor a pensar, algumas a terminarem com uma pergunta retórica que incomoda ou com afirmações que avivam o sentido crítico das narrativas, pois, como é dito no conto em que se pretende pôr em causa os preconceitos dos olhares sobre geografias que nos são estranhas, “o contrário da realidade não é a irrealidade nem tão-pouco a ficção”.
Por estes contos passam duas fundamentais verdades que tecem os percursos de cada um: por um lado, a comodidade que vamos construindo num mundo muito próprio, pois “só vemos o que queremos ou podemos (que é uma maneira de dizer que todos vemos desequilibradamente, por excesso ou por omissão)”; por outro lado, a necessidade da reflexão e do olhar crítico sobre o nosso universo, pois “pensar agita por dentro e derrama para fora como leite em fervedor”.
Destes movimentos de oscilação, sai uma aprendizagem para que uma das narrativas nos convida: “a realidade é mais misteriosa e imaginativa do que qualquer estória que eu pudesse inventar.” Por isso, é que o derradeiro conto, “Parapeitos”, termina de forma peremptória: de peito assente no parapeito, a tia não se apercebeu dos factos que envolveram um pequeno pardal, mas a narradora relembra o sucedido, embora não o tendo compreendido – “Não sei o que aconteceu, ainda hoje não percebo, mas o pardal foi pulando, pulando, pulando até se acercar do vestido florido da minha tia e desaparecer por entre os seus seios para nunca mais ser visto – e a minha tia Graça nem deu conta do sucedido. Juro!” Este compromisso com a autenticidade, expresso numa exclamativa de juramento, serve para fechar o livro e para o leitor ser chamado a respeitar o pacto do narrador com a realidade.
Livro intenso, este, que mereceu o Prémio do Conto Manuel da Fonseca de 2022 e que nos desnuda perante as formatações e nos protege dos mecanismos que abalam e pautam a forma de se ser na nossa contemporaneidade, frequentemente desmontando convenções, outras vezes valorizando pequenos gestos do quotidiano, outras ainda levando-nos ao riso sobre nós próprios. Um bom convívio com o mundo que todos os leitores podem guardar no bolso…