O título diz tudo – “101 Contos de Bolso”. A quantidade de textos e a extensão dos mesmos pode ser um convite para a leitura desta obra de Maria Teresa Meireles (a que foi atribuído o Prémio do Conto Manuel da Fonseca no ano passado, agora publicada pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém), onde quer que estejamos, cultivando o aproveitamento do tempo. Assim, nunca o leitor será defraudado pelas interrupções, salvo se elas decorrerem das corridas da imaginação, porque, como refere a epígrafe escolhida, de Lídia Jorge (no seu conto “A instrumentalina”), “um conto breve faz um sonho longo”. E este é o primeiro desafio que Teresa Meireles apresenta, ainda que através de palavras emprestadas – cada um destes “contos-de-bolso” cumpre-se com a conivência do leitor, levado a participar na história pela imaginação que o texto suscita. Se isto é verdade para qualquer obra literária, muito mais importante se torna quando os elementos fornecidos pelo narrador se pautam pelo minimalismo e pela rapidez narrativa…
Podemos assentar logo na primeira história que nos é apresentada, “Gostava de miniaturas”, uma quase-teoria da micro-narrativa, em que tudo o que rodeia e suscita a vida da personagem tem a ver com o minúsculo – dos brinquedos ao vestir, da alimentação aos livros preferidos, das memórias de infância até à vontade de imitar personagens diminutas, da profissão escolhida até ao objecto da sua investigação, do trabalho em torno de uma tese até à sua perda entre grãos de areia… Mas este conto é ainda importante pelas remissões que faz para o mundo da literatura, não só pelo entusiasmo e conhecimento que a personagem revela quanto a nomes que construíram a tradição literária do universo das pequenas coisas (Jonathan Swift, com Gulliver; Alexis Carroll, com Alice; Charles Perrault, com os seus contos), mas também porque deixa a porta aberta para a eventualidade de outras possíveis referências literárias a surgirem – e, de facto, elas visitam-nos a cada passo, chamadas a propósito de estabelecimento de relações ou de lembranças, vindas de variadíssimos universos – Pablo Neruda, Jane Austen, Karen Blixen, Rousseau, os irmãos Grimm, Simone de Beauvoir, Colette e também o referencial da “Bíblia”.
A entrada nos sucessivos contos abre as portas ao leitor daquilo que podem ser cenas dos quotidianos – casos da vida, em que interferem as nossas inseguranças, as nossas desistências, as nossas des-ternuras; histórias da vida, em que sobressai o valor do momento, o ímpeto da decisão ou as suas consequências, o convívio com os hábitos que nos vão fazendo, a inacessibilidade ao que o outro sente, a insistência na não-violação da privacidade e da intimidade.
A relação das personagens com o narrador vai variando ao longo dos textos, sendo mais frequente o distanciamento para a terceira pessoa, embora haja também muitos exemplos de narração na primeira pessoa, seja ela masculina ou feminina, por vezes mera testemunha do visto. O ambiente que rodeia as personagens decorre frequentemente da família, dando espaço para uma presença muito marcante dos avós e, por vezes, dos pais e do namorado ou marido.
Interessante é acompanhar o valor dado à expressão através da força da palavra nestes “101 Contos de Bolso”, que ocorre através de múltiplas situações: a construção de neologismos (“termo-incompatibilidade” ou “verbotropismo” – fica o desafio para descobrirem os seus significados na tarefa de leitura); o louvor da língua, da fala e da comunicação, presentes, por exemplo, numa narrativa em que o assunto ronda uma contadora de histórias; a criação de situações do fantástico através do jogo de palavras (sugerido, por exemplo, através da imagem de uma hera trepadora e invasora) ou por via da riqueza imagética (como no caso do pardal que desapareceu entre os seios de uma tia de vestido florido); a valorização de uma pequena história como uma anedota; a articulação entre as palavras e a vida, numa interessante associação do que possam ser “conjugações irregulares”, vinda da incompatibilidade entre palavras etimologicamente próximas e semanticamente ligadas, como “cônjuge” e “conjugar”; a descoberta das mensagens constantes em cartas arrecadadas num sótão, enviadas pelo avô combatente da Grande Guerra, como possibilidade de imaginar o romance entre os dois apaixonados que se carteavam; a força de uma palavra no momento oportuno, como acontece no conto “O segredo”, levando a destinatária a vencer o medo e a aprender a crescer… enfim, um mundo de valorização da palavra e dos contextos que ela origina, uma homenagem também à língua que nos aproxima.