Em 26 de Abril de 1974, o edifício-sede dos Serviços de Censura, na Rua da Misericórdia, em Lisboa, foi invadido e parte significativa dos haveres em arquivo foi atirada pelas janelas ou furtada. Salvaram-se, no entanto, cerca de mil e duzentos títulos, graças ao pedido que A. H. Oliveira Marques (1933-2007) fez a um seu colaborador no sentido de ser feita a recuperação dos livros que ainda estariam naquele serviço, acervo que passou a integrar a Biblioteca Nacional.
A coincidir com a publicação da colecção “Biblioteca da Censura” (que o jornal “Público” tem vindo a distribuir nos dias 25, num projecto que irá até Abril de 2024), a Biblioteca Nacional de Portugal acaba de publicar o seu catálogo “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo”, com estudos introdutórios de Álvaro Seiça e de José Pedro Castanheira, compreendendo a descrição dos títulos da Biblioteca dos Serviços de Censura e a lista das obras proibidas que existiam na Biblioteca Nacional e não podiam vir a público, além de excertos de relatórios dos leitores que serviam para fundamentar a autorização ou a proibição das obras.
Sobre as origens dos títulos proibidos pouco se sabe – oriundos de bibliotecas particulares ou de associações recreativas, de livrarias, de editoras, por certo, mas sem haver indicação precisa desse ponto de recolha. Livros em português ou noutras línguas, provenientes de diversos países, muitos deles proibidos, outros autorizados apenas em língua estrangeira ou porque a proibição poderia dar nas vistas – enfim, um mundo de decisões onde parece campear a arbitrariedade ou o gosto discutível. Proibidos eram temas como a Rússia ou URSS (chegando-se ao ponto de proibir títulos como uma “Histoire de la Littérature Russe”, de Hofmann, ou guias linguísticos como “Le Russe: Manuel de langue russe pour les français”, de Potapova, ou “Elementary Russian Conversation”, de Kany e Kaun), a China, a sexualidade, o retrato de questões sociais delicadas, o pensamento contra a religião. Fosse como fosse, está o leitor perante aquilo que Maria Inês Cordeiro, na apresentação desta obra, escreveu: “a memória de uma biblioteca para não ser lida, um testemunho do que é contrário à própria ideia de Biblioteca.”
As justificações para as propostas de interdição assentam sempre em argumentos que pretendem ser moralizadores – por exemplo quem leu um título como “Harmonia e desarmonia conjugais”, de A. César Anjo (colecção “Saber”, 1950), opinou: “Trata-se de uma porcaria desmoralizadora e desmoralizante, encapada no disfarce dum pseudo cientismo técnico que só pode enganar primários ou muito incautos. Julgo de proibir rigorosa e urgentissimamente, por se estar a vender na Feira do Livro com toda a força, numa sementeira maléfica de todas as horas.”
O almadense Romeu Correia (1917-1996) viu o seu livro “Sábado sem sol” proibido em 1947, decisão assim justificada pelo censor: “Este livro de contos é, de um modo geral bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social. (…) São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”
A hesitação da censura quanto à proibição ou não de um livro surge a propósito de um título como “La peau”, de Curzio Malaparte (1898-1957), proibido em 1960 com o seguinte argumento: “um livro (…) que apesar de bem escrito, o é por um comunista”. Uma década depois, outro relatório dizia para o mesmo título: “Autorizado o original e qualquer versão em língua estrangeira, mas vedada a autorização para qualquer tradução para língua portuguesa, seja qual for a sua origem.” Assim, a leitura era permitida ao grupo restrito dos que soubessem falar outra língua…1