O livro tem três partes, cada uma delas sujeita a título constituído por uma data – sequencialmente: 26, 27 e 28 de Março de 2021. As marcas cronológicas podem prometer uma noção de realidade e de objectividade. No entanto, o livro foi publicado pouco antes de qualquer destas datas, aspecto que choca com essa antevisão de certeza e de factualidade trazidas pelo registo temporal. É o que se passa com a obra “Almoço de Domingo”, de José Luís Peixoto (Quetzal Editora), a circular desde Março, associada ao percurso biográfico de Rui Nabeiro, mas apresentada como “romance”.
Em 28 de Março de 2021, Rui Nabeiro (n. 1931) celebrou o seu nonagésimo aniversário. O último capítulo do romance narra esse dia e a festa que o preencheu. Imaginariamente, na perspectiva do narrador. Ficcionalmente, como é o percurso desta obra, ainda que recorrendo a episódios conhecidos da biografia que a motivou.
Se o leitor for à procura do relato biográfico do campomaiorense Rui Nabeiro, encontrará dificuldades em fazer um resumo de tal percurso. Por isso, mais vale deixar-se levar pela mão da invenção e da criatividade narrativa, num permanente encontro com o “senhor Rui”, personagem que preenche a obra, dominando-a. Indiscutivelmente, alguns episódios biográficos mais ou menos conhecidos passam por esta história, mas ela adensa-se pela interpretação que a personagem deles vai fazendo, por esse itinerário contado, pesado e pensado, que, simultaneamente, vai edificando a própria personagem.
“Sabia que envelhecer é acumular dores: começam por doer certos gestos, certos jeitos, virar-se de repente, agachar-se para atar o sapato; depois, doem as acções mais comuns, sentar-se, levantar-se, caminhar; até que, por fim, dói tudo, dói estar, dói ser.” Esta forma de aprendizagem confidenciada pelo narrador surge quase no início do primeiro capítulo, prenunciando uma história dolorosa, expectativa falsa porquanto a narrativa equilibra o que pode ser uma vida de nove décadas, entre a alegria e a dor. No final, no capítulo da festa, ao mesmo tempo que decorre o convívio com a família e com os amigos e a convocação de muitos que já partiram, o “senhor Rui” vai confrontando o leitor com aprendizagens simples como: “comprar tudo o que temos é comprar a nossa vida”, “todas as pessoas são alguém” ou “ser o mais velho é assistir à morte de todos aqueles com quem se cresceu” – breves, mas sentenciosas frases, quase a provarem que a simplicidade se aprende, é aquilo que se descobre no final do trajecto da vida, porque “há lições que só se aprendem depois de uma vida inteira”.
Muitos dos aspectos da vida de Rui Nabeiro passam por este romance: a perda do pai ou da irmã Clarisse, a demissão de Presidente da Câmara, o encontro com Mário Soares, a presença na inauguração da ponte sobre o Tejo, a ida a Timor, o contrabando na zona fronteiriça, o refúgio em Espanha, o nascimento dos filhos, as memórias da infância, as empresas que criou. Lado a lado, vai também a vida em Campo Maior, espaço geográfico e literário, bem como um intenso mundo de relações humanas e familiares onde se assinalam valores como a ternura, a família, a atenção ao outro ou a dedicação a uma obra.
O ângulo de observação de todos estes acontecimentos vai sendo dividido entre o narrador e a personagem, categorias que, muitas vezes, se sobrepõem, fazendo de “Almoço de Domingo” um romance com fragmentos de uma biografia dentro, forma de interpretar e de olhar o mundo e os outros e de levar o leitor ao fascínio das vidas visitáveis.