A imprensa foi um dos canais por onde passou a mensagem de D. Manuel Martins (1927-2017), o primeiro bispo de Setúbal, em artigos de opinião curtos, de leitura acessível, abordando causas pertinentes, relacionadas com a forma de ser cristão e de ser cidadão, tal como aconteceu em Setúbal com a sua colaboração nos jornais “A Seara” (da Fábrica da Igreja de S. Julião) e “Notícias de Setúbal” (órgão diocesano). Várias dessas crónicas foram reunidas em livro, tendo dado origem a títulos como “Pregões de Esperança” (em 1997, com nova edição em 2014) e “Posso entrar?” (2012), ambos recolhendo colaboração nos jornais sadinos, e “Nascemos Livres” (2018), crónicas vindas a lume no “Jornal de Matosinhos”.
A palavra do primeiro prelado sadino voltou a ecoar, através de um título como “Crescendo com cheiro a Primavera” (Paulinas Editora, 2023), conjunto de 52 crónicas originalmente publicadas no mensário “Crescendo”, jornal paroquial de Santa Cruz do Bispo, entre Fevereiro de 2013 e Setembro de 2017 (mês em que faleceu), num trabalho de recolha devido ao setubalense Eugénio Fonseca (que já em 2020 publicara a obra “Testemunho de duas vidas compartilhadas”, memória do trabalho e da amizade desenvolvidos com D. Manuel Martins). Estamos perante um livro que ganha também sentido quando D. Américo Aguiar chega à diocese de Setúbal e assume D. Manuel Martins, seu conterrâneo, como referência.
A crónica de Fevereiro de 2013, a primeira, reflecte sobre o sucessor de Bento XVI, que nesse mês apresentara a resignação, e, se bem que elogioso para o seu desempenho, D. Manuel Martins acalentava uma esperança: “que o novo Papa, com todas as experiências acumuladas dos antecessores, tenha, pelo menos, a força de arrumar a sua Casa. Todos vêem que isso se impõe.” No mês seguinte, o regozijo com a escolha saída dos cardeais era notório: “Exultemos de alegria e demos graças ao nosso Deus, porque deu à sua Igreja um novo Papa”. Enquanto leitores, desconfiamos mesmo de que D. Manuel Martins sorria de satisfação – referindo-se a Francisco, aponta várias características que hoje sabemos terem marcado o seu papado: veio de um “continente jovem”, “aparece ao mundo com simplicidade”, “assume o nome de Francisco, do Irmão Universal”, trocou hábitos palacianos por uma vida comum e “conhece o mundo”. Para D. Manuel Martins, era clara a mudança: “Ninguém falava dele como sucessor de Bento XVI, enquanto que dois ou três andavam na boca dos fabricadores de prognósticos. Foi mesmo o Espírito Santo que o tomou pelas mãos e o deu à Igreja.”
Por estas reflexões de D. Manuel passa o valor das palavras e dos gestos de humanidade (o sentido de expressões como “obrigado” ou “desculpa”, por exemplo), circula a ideia de família com referência de proximidade e de aprendizagem (que se pode estender até à ideia de paróquia), é valorizado o património e a paisagem, vinga a ideia de modernidade da Igreja (com as referências a D. António Ferreira Gomes, seu mestre, ao Concílio Vaticano II ou a Paulo VI), são interpretados momentos do calendário litúrgico (os tempos da Quaresma e do Natal, as celebrações dos Fiéis Defuntos ou do Corpo de Deus, as festividades religiosas), é olhado o mundo nos seus cataclismos (atentados na Turquia, a acção do “Brexit”, o terramoto no Nepal), surge uma perspectiva sobre a actualidade em Portugal (reflexões sobre os incêndios ou sobre os interesses daqueles que “se nos propõem governar” nas autárquicas). Se, por um lado, é sempre acalentada uma esperança, há também receios – em Julho de 2017, escrevia: “A vida não vai bem em Portugal. Estabeleceu-se um clima de desordem e de medo (…), preocupa-nos a sorte do país.”
Na sua relação de afecto com Setúbal, D. Manuel Martins relata dois episódios que constituíram aprendizagens para si mesmo: o primeiro, o encontro com o sem-abrigo à entrada da catedral sadina antes de uma celebração natalícia; o segundo, a recusa das irmãs da congregação de Teresa de Calcutá em terem televisão, sofá e frigorífico em casa. Ambos os momentos deixaram o bispo emocionado pelo que simbolizaram na necessidade de despojamento e de autenticidade.
No texto introdutório, João Matias Azevedo, pároco e responsável pelo periódico, testemunha a generosidade do colaborador, um “luzeiro no tempo” que ajudou a “cultivar a autoestima” do próprio jornal. A diversidade dos temas tratados é grande, sempre na linguagem simples e comprometedora que caracterizou D. Manuel, prevalecendo como destinatário das suas mensagens um “nós”, em que ele próprio se integrava.