O livro pode dividir-se em duas partes: a primeira, levantando a história de uma instituição como foi o Círculo Cultural de Setúbal (que durou entre Maio de 1969 — é do dia 28 desse mês a escritura pública que o forma — e o último dia de 1998); a segunda, relembrando a ligação de José Afonso à cidade de Setúbal e o contributo militante que este lhe deu, particularmente na sua acção no Círculo Cultural. Fala-se de uma obra indispensável para o entendimento do que foi a intervenção cultural em prol da liberdade e da promoção e formação individual de muitos setubalenses, escrita por Albérico Afonso Costa, “O Círculo Cultural de Setúbal – De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução – Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso”, de edição recente (Câmara Municipal de Setúbal, 2024).
Os quase trinta anos da história do Círculo Cultural de Setúbal são relatados a partir de investigação nos arquivos da Associação José Afonso e da Torre do Tombo, da imprensa local e de entrevistas a 33 participantes na história da associação, fontes que permitem ao leitor sentir também o ambiente vivido em torno deste projecto, frequentemente pintado pela memória da intensidade da experiência levada a cabo por muitos intervenientes.
Desde a sua primeira iniciativa — uma visita de estudo à Estação Romana de Tróia, em 27 de Junho de 1969 —, o Círculo interveio na cultura setubalense a partir de múltiplas entradas: artes plásticas, cinema, teatro, fotografia, poesia, conferências, edição e uma secção escolar (que se revelou fundamental para a formação de muitos jovens e adultos interessados no seu enriquecimento académico, feito fora dos horários de trabalho). A explicação para a intensidade e importância da acção desenvolvida aparece relacionada com o contexto de vazio sentido, “de desvalorização de tudo o que pudesse ter um aroma mínimo de pensamento crítico, essa dimensão tão temida e odiada pelo regime”, o que permitirá “que o Círculo se vá configurar como um oásis naquele deserto cultural em que se vivia.”
Na origem desta instituição estiveram jovens ligados ao Centro de Estudos Humanísticos, criado no Clube de Campismo de Setúbal no início de 1967, bem como o grupo dinamizador da página cultural “Dom Quixote” (publicada n’ “O Setubalense”), objectivo que reuniu os nomes de Carlos Tavares da Silva, António Manuel Fráguas, António Quaresma Rosa, Tito Lívio Aguiar, António Júlio Garcia, Maria Antonieta Garcia, Alberto Almeida Garcia e Fernando Cardoso, nomes a que vieram juntar-se vários mais como “fundadores” (Maria Adelaide Rosado Pinto, Idalino Cabecinha, João Moniz Borba, José Afonso, Clementina Pereira, entre outros).
Desde que as actividades foram iniciadas, o Círculo esteve sempre sob observação da polícia política, que o classificará como “alfobre de oposicionistas ao regime vigente” e chegará a manter um “infiltrado” nas sessões para ir dando conta do acontecido. O que terá salvado a manutenção do Círculo foi o facto de, nos seus órgãos sociais, também constarem nomes considerados insuspeitos e pertencentes à elite local (Adelaide Rosado Pinto, Moniz Borba, Idalino Cabecinha, por exemplo) ou o próprio Secretário do Governo Civil (Fernando Cardoso); por outro lado, instituições como a Câmara Municipal de Setúbal e o Governo Civil apoiaram diversas iniciativas levadas a cabo pela instituição, o que dificultava excessos que a polícia política pudesse pretender… Não obstante isso, alguns dirigentes do Círculo conheceram a prisão, sob a alegação de “ligações orgânicas ao PCP ou a outras organizações clandestinas”.
Se, com o 25 de Abril, o Círculo funcionou, como refere Albérico Costa, como “o Quartel-General da Revolução”, pelo protagonismo que tiveram vários dos seus elementos na organização dos democratas, também se torna notório para o autor que um período de algumas divergências e tensões, o assumir de novas responsabilidades políticas por parte de alguns dos seus dirigentes, a multiplicidade de iniciativas culturais que muitas entidades passaram a promover e o facto de passar a existir ensino nocturno levarão a uma “progressiva perda de centralidade do CCS no espaço cultural e político da cidade”, que terá o seu termo na entrega das instalações da sede ao proprietário, depois de um tempo de dificuldade económica.
A investigação presente nesta obra faz justiça ao papel da instituição Círculo Cultural de Setúbal e a muitas das figuras que foram centrais na sua acção, num discurso que dá voz aos protagonistas e aos documentos que subsistem, contributo enriquecedor para a história da cultura em Setúbal.