Em 1837, o austríaco Friedrich Halm (1806-1871) fazia estrear em Viena a peça “Camões”, que, dois anos depois, o poeta russo Vassili Jukovski (1787-1859) traduziria para a sua língua, num trabalho que, segundo Irina Khoklova, mantém, ainda hoje, “o seu encanto estético”, tendo em conta “as imagens artísticas, o estilo e o conteúdo ideológico” que o tradutor conseguiu incutir à obra, trabalho recentemente traduzido para português (E-primatur, 2024), que está na origem da ópera “O Último Canto – Camões e o Destino”, de César Viana, estreada há dias. Camões era já conhecido pela cultura russa, tendo havido em 1788 uma tradução de “Os Lusíadas” por Alexander Dmitriev, feita a partir de uma versão francesa em prosa devida a Jean-François de la Harpe, datada de 1776.
A história trazida por Jukovski desenrola-se em torno de quatro personagens: Camões, José de Quevedo (que, em abono da verdade, se deveria chamar Francisco de Quevedo), Vasco Mouzinho de Quevedo (filho do anterior) e um guarda (entrando este último apenas na curta cena inicial). As quatro cenas decorrem “num quarto superior apertado, numa grande enfermaria de um hospital de Lisboa”, em 1579, pretendendo retratar os últimos dias do poeta, isolado no esquecimento — quando José de Quevedo é conduzido ao aposento de Camões, conversa com o guarda que o leva, inquirindo se ele tem ideia de quem é o doente e ouvindo como resposta: “Qual ideia, qual quê! Desde que tenha um número, não nos importa o seu nome e os boatos.” O guarda não se conteve e acrescentou que o paciente fora para um quarto normalmente não requerido — “Até agora, aqui ficavam os malucos: mas tanto quis ele ficar sozinho, e na altura este quarto livre estava, que eu para aqui o mudei de uma assentada.” E Quevedo reforçou a decisão, ficando o leitor a par das ideias do visitante: “Se por mim fosse, trancava estes malditos poetas num manicómio.”
José de Quevedo mantém longa conversa com Camões durante a segunda cena, num discurso em que se cruzam as memórias de mútuo conhecimento antigo e o motivo da visita. No decorrer do encontro, Quevedo encarrega-se de mostrar ao poeta a diferença social que os separa: ele, “corpulento”, sinal de bem-estar social e económico; Camões, “magro como um cadáver cavo”, consequência de ser poeta… O diálogo é muito mais reflexivo da parte do escritor, considerando sobre o destino, os estudos, a procura do saber, o conhecer mundo, os amores, o sofrimento. Em passo avançado, Quevedo, confiante no seu poder de abastado, anuncia ao que vem: convidá-lo a ir para sua casa para que sirva de exemplo ao filho, Vasco, jovem que segue a tentação da poesia e recusa o caminho do pai, que assim verá a miséria a que um poeta pode chegar…
Camões recusa mudar, mas fica disponível para um encontro com o jovem a fim de o prevenir das agruras da vida. Na terceira cena, um monólogo do poeta faz uma reflexão sobre o esforço para salvar o poema e sobre a solidão do presente, num mundo nem sempre concertado, mas num itinerário em que “o ganho de um sonhador é o seu sonho”.
A visita de Vasco ocorre na quarta cena, sendo a primeira observação de Camões relacionada com o curto tempo que lhe resta até que a morte venha. “Estás a morrer?… Não, não se pode dar o caso de que Camões morra!”, afirma o visitante, que ouve do poeta já firmado conselhos relativos aos perigos que possam decorrer da procura da fama. O diálogo entre o jovem e o mestre prossegue na descoberta do sentimento poético, da construção de um caminho de felicidade, na afirmação das convicções literárias e das intenções de Vasco, a quem Camões não consegue dissuadir, confessando: “Seus olhos resplandecem, as faces enrubescem; e fala-me como um profeta; e todo o meu interior treme das palavras dele; não terá sido o próprio Deus que enviou esta criança até mim?” A última fala cabe ao velho poeta, que, antes de finar, recomenda: “Meu filho, meu filho, sê firme, com a alma sempre viva! A poesia é Deus nos sonhos bem-aventurados desta Terra.”
Inverteram-se assim as intenções do pai interesseiro para a história acabar na glorificação do poeta como ser profético, como figura que nasce para a arte e para a poesia, num final em que Camões e Vasco de Quevedo encontram afinidades e ficam irmanados, sendo possível ao mais velho morrer porque a eternidade da poesia estava garantida…