“Era uma vez…” um comboio, um risco, uma parede, um cacto, uma sílaba, um passaporte, um peregrino, um móvel, um sonho, um fio de luz, um repórter, um pinheiro. E assim podíamos ir juntando elementos, cada um deles dando origem a uma diferente narrativa, até perfazermos as sessenta histórias que compõem o livro “Almanaque lacónico” (Edições O Jornal), de António Torrado (1939-2021), ilustrado por Espiga Pinto, publicado em 1991.
O título logo nos conduz para dois vectores importantes: por um lado, a questão dos princípios essenciais; por outro, a concisão. De facto, António Torrado, que conhecia bem a obra queirosiana (para jovens e para o teatro adaptou alguns dos seus títulos), bem concordaria com o escrito de Eça datado de 1896: “O Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente.” A esta característica, Torrado associou a brevidade na extensão das histórias, despertando a curiosidade do leitor pelo desenvolvimento de uma ideia que acaba por ficar mais pela sugestão, pela economia discursiva, para que o leitor navegue no que não é dito, assim reforçando com ele uma certa cumplicidade.
As histórias não têm título e todas começam por esse perscrutar de mistério dado pelo indicador temporal “era uma vez”, sendo depois apresentadas personagens – elementos do mundo das coisas (a maioria) ou representações humanas, sendo que, nas primeiras, raramente a identificação vai além do nome (frasco, duna, baluarte, corda, romance), enquanto nas segundas há necessidade de acrescentar modificador identitário (“homem que estava a urinar”, “homem que valia pouco”, “homem que ouvia foguetes”, “mulher que teve cinco filhos”, “criança particularmente dotada”).
Tão curtas histórias favorecem a prática aforística, preenchendo o espaço das explicações e demonstrações, desafiando o leitor para o conteúdo das tais “verdades iniciais” a que se referia Eça – “um pequeno risco pode transformar-se num grande risco, se não for apagado a tempo”, “aqueles que hoje cercam podem ser amanhã os cercados”, “as soluções de recurso são sempre ilusórias”, “as peças soltas da nossa vida nunca nos abandonam”, “não ser tomado a sério é uma das rubricas terminais na escala dos suplícios”.
Por estas histórias passam as referências que vão alimentando a humana forma de ser – o sonho, a ambição, a vaidade, o ilusório, a dúvida, o desgaste, o mistério, o amor, os dogmas, a fragilidade. Os enredos tecem-se de uma ironia requintada, muitas vezes formatados pelas histórias tradicionais e dominados pelo insólito das situações. São marcas destas que não deixam o leitor indiferente perante histórias como aquelas em que um escândalo é protagonista (levando a um suicídio a partir do 25º andar), em que Deus e um homem embatem num cruzamento (por desrespeito pela prioridade e numa explicação do destino), em que um robot trocou as asas por uma hélice (tendo um desfecho próximo do que sucedeu a Ícaro) ou em que uma menina perguntava aos burros que via se não seriam príncipes encantados (acabando por se inverter a sorte da pequena quanto ao encontro com um milagre).
Assim, “Almanaque lacónico” é constituído por histórias divertidas, curtas, intensas, na sua capacidade de desconstruírem ideias feitas, contribuindo para a descoberta de verdades que fazem a Humanidade.
OBS.: Há 20 anos, em Junho de 2001, integrando a Associação de Pais da Escola das Amoreiras, convidei António Torrado para vir à Escola. Foi uma sessão memorável de cumplicidade que criou com os alunos. Homenageá-lo é lembrá-lo e também continuar a ler as suas obras.