Meio século depois do 25 de Abril de 1974, torna-se imperioso haver testemunhos que contem o antes, revivam o durante e avaliem o depois, num percurso que seja construtivo e se oriente pela permanente edificação da liberdade e pelo contínuo engrandecimento da humanidade que somos. A data foi pretexto para Alexandrina Pereira desafiar uma centena de mulheres (50 do concelho de Palmela e outras tantas do concelho de Setúbal, de grande diversidade de profissões, muitas nascidas a partir de 1974) para testemunharem sobre as suas experiências, memórias e olhares sobre o feminino, registos coligidos em duas antologias, editadas com o apoio dos respectivos municípios — “Abril, Nome de Mulher”, para o caso de Palmela, e “Liberdade no Feminino”, para o de Setúbal, ambas publicadas recentemente.
Para Alexandrina Pereira, “esta variedade de testemunhos poderá ser objecto de estudo em vários meios, com enfoque nas escolas, e principalmente nos mais jovens, para que a memória não seja curta e a história não se repita”, intenção registada no volume editado em Palmela. Um segundo propósito, que completa o anterior, surge no título publicado em Setúbal, ao desejar que “cada página deste livro seja um grito de libertação perante quem foi fechando um círculo à volta da condição feminina”, poder responsável por remeter as mulheres para a “ignorância imposta por leis que as submetia às mais humilhantes situações.”
Os temas que perpassam por esta centena de testemunhos, muitas vezes eivados de reflexão quanto ao presente e quanto ao futuro (mesmo que as aprendizagens advenham do relato transmitido por familiares), são comuns às duas antologias: as condições difíceis de vida antes do 25 de Abril, as memórias da guerra colonial, as lembranças do que era a escola, a falta de liberdade e a prisão, o medo da polícia política, o papel de subserviência atribuído à mulher, o fascínio pelas promessas pressentidas com a Revolução, a força da manifestação no primeiro Primeiro de Maio, o entusiasmo perante uma figura como José Afonso, a influência e aprendizagem vindas das mães e das avós (sobretudo nos testemunhos de mulheres que nasceram após 1970), as referências ao que falta cumprir como direito e garantia de bem-estar social (no âmbito da saúde e da justiça e na afirmação da democracia e da liberdade, tópico que, em alguns casos, reacende a questão do medo e a indignação perante o populismo).
Por muitos dos testemunhos passam momentos de comoção, que foram vividos na primeira pessoa: o ter tido o primeiro cerco da PIDE aos 16 anos (Antonieta Santos), a dureza da vida da conserveira e os cenários de violência doméstica sobre a mulher (Emília Mondim), a vivência da ruralidade (Felisbela Rilhó), o medo da PIDE e dos traidores (Fernanda Pésinho), o castigo infligido na escola por uma professora esposa de um agente da PIDE a uma miúda cujo pai trabalhava em jornal que dava voz à oposição (Isabel Castan), a felicidade das aprendizagens de um percurso de activista (Natividade Coelho), entre outros que constam no volume editado em Palmela; o exemplo vindo da vida em que a mãe disse “não” à humilhação (Cátia Oliveira), a comoção ao ver com o pai a libertação dos presos de Caxias (Dina Barco), a história de família e de afirmação de identidade (Helena de Sousa Freitas), o peso de viver ao pé das instalações da PIDE e de assistir ao “teatro de sombras” dos informadores (Isabel Victor), a história da mãe que se indignou porque o Estado não assumia a trasladação dos jovens mortos na guerra colonial (Maria Luís Bento), a dura experiência das desigualdades sociais e consequente indignação (Rita Drouillet), entre outros que povoam o livro dos testemunhos de Setúbal.
Quanto ao futuro, as ideias que perpassam são de confiança num regime livre, ainda que muitas vezes exista a apreensão quanto aos perigos — com 40 anos, Ana Pereira, de Palmela, considera: “Agora, crescida, volto a ter medo. Tenho medo de que o fascismo volte embrulhado num papel dourado coberto de populismo. Tenho medo de que as canções de Abril percam as suas palavras e nos esqueçamos de quem lutou e quem morreu pela luta. Tenho medo de que tenhamos perdido o poder da palavra. E o ‘medo’ é das palavras que mais evito usar, mas prefiro ter medo a ser inconsciente.” Helena de Sousa Freitas, de Setúbal, com 48 anos, construiu o seu texto em diálogo com a mãe, Adélia Lino Rapaz, a quem dá a última palavra no testemunho: “Se houver que desenterrar os tempos velhos, que seja para estudar os erros ali cometidos e evitar repeti-los, nunca para matar supostas saudades. E, em seguida, é devolvê-los à sepultura e enterrá-los bem fundo. Sobretudo, enterrá-los bem fundo!”
Convicção e confiança são, assim, dois pilares fortes na sustentação do futuro… construídos sobre a base da memória, que não permite que a história seja traiçoeira.