29 Março 2024, Sexta-feira
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500 Palavras: Livros amordaçados (2)

Em 1970, no sexto volume de “Páginas”, Ruben A. (1920-1975) confessava: “O que sinto mais terrível de tudo é o eu próprio fazer a primeira censura, quando escrevo já estou a fazer-me censuras, a ver se passa, equilibrar a prosa, falar nas entrelinhas, mentir. Esta censura mental, esta rede que coloco no pensamento é que é o verdadeiro drama.” Um quarto de século antes, ao “Diário de Lisboa” (17 de Novembro de 1945), Ferreira de Castro (1898-1974) dava longa entrevista sobre o tema da censura, puxada para a primeira página sob o título “O momento político: ‘O mal não está apenas no que a Censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir’ – diz-nos o escritor Ferreira de Castro”.
Ambos os escritores estavam a referir-se à mesma coisa – a auto-censura e o papel que os serviços de censura desempenhavam na criação artística. E Ferreira de Castro ia mais longe, ao afirmar: “O que se tem estado a fazer em Portugal é desfalcar o futuro do legado espiritual que lhe podíamos deixar. (…) Os livros nacionais publicados na última década estão, geralmente, deformados pelos seu próprios autores, receosos da censura.”
Ao percorrermos as justificações para interdição ou recomendações de alteração reproduzidas em “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo”, não restam dúvidas sobre a forma como esta influência se exercia. Joaquim Lagoeiro (1918-2011) viu a decisão final para o romance “Os Fraldas”, em despacho de Junho de 1950 – “autorizado com cortes”, baseado no parecer que argumentava ser o livro “profundamente mau”, questionando se o autor “poderá refundir o livro, de modo a fazer desaparecer a feição comunista que actualmente apresenta” e admitindo: “atendendo às condições presentes, julgo que será de autorizar com os cortes que fiz a azul.” De igual modo, a obra “Romances do mar”, de Bernardo Santareno (1920-1980), impressa em 1955, repositório de “versos maus, doentios, irreligiosos, associais e imorais, numa palavra, deseducativos”, levou o director a despachar: “Poderá ser publicado, desde que seja suprimida a poesia ‘Romance do Pescador Velho’”.
Não havendo dúvidas sobre o papel que a censura queria exercer sobre a consciência dos escritores, também perpassa, em situações variadas, uma sensação de hipocrisia por parte dos decisores, sobretudo relacionada com as inconveniências que pudessem resultar das interdições, como foi o caso da obra “Bichos”, de Miguel Torga (1907-1995), que, em 1951, teve o seguinte despacho: “Este livro (…), embora inconveniente, não foi autorizado nem proibido, por razões óbvias”, pois o autor é “escritor de forte poder de aceitação por leitores de deficientes recursos espirituais”, que “procura motivos sugestivos, em prol da descrença, da aversão ao dirigente ou ao afortunado, fomentando o desrespeito social.”
Caricata, pelos motivos invocados, se torna a razão da proposta de proibição da “Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica”, organizada em 1966 por Natália Correia (1923-1993): “não é possível admitir que seja viável a circulação deste livro em Portugal, dado o seu carácter pornográfico. (…) Fica-nos a impressão de que esta obra pretende ser a contribuição comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização.”
É evidente que a prática da censura durante o Estado Novo quis construir normas para controlar mentalidades. Mas as consequências foram brutais – como Álvaro Seiça recorda, elas foram “físicas, materiais e psicológicas”, com escritores exilados e violentados, numa prática que permitiu mesmo que alguns fossem publicados “para não levantar ‘publicidade’ inoportuna após vários anos de circulação, sendo negadas recensões ou citações nominais em jornais”. Em suma: uma morte que pretendeu ir muito além daquilo que seria o acto de escrever, visando a limitação na criatividade, na opinião e na denúncia. No fundo, o amordaçar do livro e do pensamento, prática que este catálogo “Obras proibidas e censuradas no Estado Novo” pretende não se repita!

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