“Há coisas que os meus colaboradores podem fazer sem mim e mesmo melhor do que eu. Mas dar vida a Tintin, a Haddock, a Tournesol, aos Dupondt e a todos os outros, creio que serei o único a poder fazê-lo: Tintin (e todos os outros) sou eu, exactamente, como Flaubert dizia ‘Madame Bovary c’est moi!’ São os meus olhos, os meus sentidos, os meus pulmões, as minhas tripas!… É uma obra pessoal, tal como a obra de um pintor ou de um romancista: não é uma indústria! Se outros pegassem no Tintin, talvez o fizessem melhor ou não. Uma coisa é certa: fá-lo-iam diferente e, assim, nunca seria o Tintin!…” Desta maneira se justificava Georges Remi (1907-1983), nome real de Hergé, o criador da famosa personagem, em entrevista a Numa Sadoul, publicada em “Tintin et Moi” (Casterman, 1975).
Parte do trabalho de Hergé e da ligação da sua obra a Portugal podem ser vistos no duplo catálogo recentemente editado pela Fundação Calouste Gulbenkian (a propósito da exposição que ali decorre até Janeiro) e pela editora belga Moulinsart – “Hergé” e “Hergé em Portugal”. O primeiro título passa pela biografia e criação do artista, num percurso que atravessa a fase da pintura influenciada por Miró ou Dubuffet e o trabalho de publicidade a que Hergé também se dedicou, visita a construção das histórias de Tintin (estruturação do argumento e dos desenhos) e de outros títulos, revela a preocupação documental que antecedia a fixação das aventuras, procura a actualidade e força das personagens, reproduz pranchas, cartazes, esboços e traz o pensar de Hergé mediante excertos ilustrativos de intervenções, justificações e apreciações, num ritmo que acompanha a organização da exposição, trabalho coordenado por Ana Vasconcelos, Joana Marçal Grilo, Maria Cristina Barbosa e Maria Helena Melim Borges.
O segundo título, “Hergé em Portugal”, coordenado por António Cabral e reunindo textos de autores diversos, faz a ponte para a recepção que o herói do jornal “Le Petit Vingtième” teve no nosso país, uma narrativa eivada de informações, de curiosidades e de arrojo. Apesar de Hergé ter aparecido em Portugal pela primeira vez em 1927, numa revista da Covilhã, “Scout Lusitano”, Tintin só cá chegará em 1936, através da influência do padre Abel Varzim e da publicação “O Papagaio”. Peculiaridades lusitanas foram várias – por cá se imprimiram, pela primeira vez, as histórias em policromia, já que os desenhos chegavam a preto e branco; houve vinhetas suprimidas, discursos alterados e nomes livremente traduzidos; foram adaptados títulos das obras (“Tintin au Congo”, de 1930/1931, foi traduzido por “Tim-Tim em Angola”, em 1939); houve discussões editoriais entre Abel Varzim e Adolfo Simões Muller; em Portugal saiu a primeira edição de “Tintin no País dos Sovietes” em país não francófono; os direitos de Hergé foram pagos, várias vezes, em géneros… Paralelamente, Tintin foi tendo o seu círculo de amigos, de tal forma que Amadeu Lopes Sabino, um dos co-autores deste catálogo, afirma ter chegado “ao universo de Hergé antes de nascer”, numa clara alusão à idade em que começou a entender as histórias de Tintin.
Acompanhado do seu inseparável “fox-terrier” Milou, Tintin teve aventuras em todos os continentes, publicadas entre Janeiro de 1929 e Abril de 1976, com polémicas à mistura, mostrando as convulsões do mundo, rodeado de personagens que acabaram por se imortalizar com ele (incluindo um tal Oliveira de Figueira, português que surge em quatro títulos da colecção, bom vendedor e falador desmedido), sem histórias de amor, passando pela ciência, pela política, por tensões sociais e por uma imaginação vertiginosa.